Por Raquel Lopes (Leia matéria original publicada pelo jornal Folha de S. Paulo)
Documentos obtidos pela Folha apontam que o Exército e o Ministério da Justiça e Segurança Pública não avançaram na integração de sistemas que facilitariam o rastreamento de armas e munições no país e ajudariam na resolução de crimes.
Especialistas apontam que hoje não existe integração entre os sistemas do Exército com os de órgãos de segurança pública, o que dificulta o trabalho de investigação no Brasil.
Uma das integrações previstas seria a do Sisnar (Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército) com o Sinesp (Sistema Nacional de Informação de Segurança Pública).
O Sinesp é o sistema do Ministério da Justiça que agrega dados de segurança pública e pode ser acessado por policiais estaduais, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. Atualmente, ele é a principal ferramenta usada no dia a dia de policiais para o rastreamento de armas.
No entanto, não agrega dados do Exército, que é o órgão responsável por registrar armas de CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores), militares das Forças Armadas e policiais.
Já o Sisnar ainda não funciona e sua implementação está em curso. A finalidade é acompanhar e rastrear os produtos controlados pelo Exército. O sistema irá abranger, por exemplo, informações de armas, munições e explosivos. Ele só poderá ser acessado pelo Exército e por policiais federais.
Integrados, os dois sistemas fariam com que quem trabalha na área de segurança pública e no Exército tivesse acesso a todas as bases de dados. Mas as tratativas não estão caminhando.
O Sisnar estava previsto na portaria 46 do Comando Logístico do Exército, publicada em março de 2020, sendo revogada no mês seguinte. Como a Folha mostrou, uma das justificativas do Exército ao TCU (Tribunal de Contas da União) era de que existia uma incompatibilidade entre os sistemas.
“Com isso [revogação], será possível interagir com o corpo técnico que está se formando para projetar a estrutura de TI, baseada no Big Data e na Inteligência Artificial, para o Sinesp, de forma que eventual integração entre o Sisnar e o Sinesp possa ser realizada de forma mais eficiente possível”, disse o Exército em julho de 2020.
Entretanto, novos documentos entregues ao TCU mostram que não havia integração em andamento até 31 de janeiro deste ano, quase dois anos depois da justificativa. Nesse período, não houve reuniões nem trocas de emails. Os documentos foram obtidos pelo Instituto Sou da Paz.
“Não foram localizadas tratativas oficiais entre esta Senasp [Secretaria Nacional de Segurança Pública] e o Colog [Comando Logístico do Exército] no que se refere à integração do Sisnar com o Sinesp. Assim, visando o início dos trabalhos de integração, foi encaminhado o email (17050113) para a DFPC/EB [Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército Brasileiro] solicitando agenda técnica”, disse o Ministério da Justiça em documento entregue ao TCU.
Como a Folha tem mostrado, a revogação de três portarias pelo Exército impede o Brasil de aprimorar as regras de rastreamento e identificação de armas de fogo e munições.
As novas portarias publicadas em setembro do ano passado, que substituiriam as revogadas, entrarão em vigor em março deste ano. Apesar de documentos mostrarem que não tem avançado essa integração, uma delas prevê a criação do Sisnar e a integração com o Sinesp.
Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, disse que hoje um policial não tem acesso aos dados do Exército em tempo real para conseguir solucionar um crime. Sem a integração, policiais estaduais continuarão sem ter acesso ao banco de dados.
“Hoje não existe nenhum sistema como o do Sisnar que permita que os policiais chequem em tempo real o produto controlado. Se o Sisnar tivesse valendo e se houvesse essa integração com o Sinesp, quando acontecesse um roubo, por exemplo, a polícia poderia pegar uma embalagem de munição, um explosivo e saber quem foi o último possuidor daquele artefato”, afirmou.1 5
O Exército disse, por meio de nota, que a integração do Sisnar com o Sinesp será possível apenas após a conclusão dos trabalhos técnicos de desenvolvimento do Sisnar. Acrescentou que tratativas já estão em curso.
Os documentos apontam ainda que o Exército abandonou as tratativas para fornecer acesso do Sinesp ao Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), banco de dados responsável por manter atualizado o cadastro das armas registradas no Exército.
Diferentemente do Sisnar, que segue o produto controlado em todo o seu ciclo e irá ajudar em investigações como as de tráfico de armas, os dados do Sigma serviriam para o trabalho do dia a dia do policial para saber se a arma de um CAC, por exemplo, está registrada no Exército, ou mesmo se um registro de arma apresentado é autêntico.
No entanto, o Ministério da Justiça afirmou ao TCU que essa integração foi totalmente interrompida por falta de respostas do Exército de junho de 2020 até agosto de 2021.
“Durante os mencionados anos, a Senasp realizou vários contatos com o Exército Brasileiro, com o objetivo de viabilizar a integração entre a referida solução e o Sinesp. Em junho de 2020 houve a paralisação dos trabalhos, devido à ausência de respostas técnicas por parte do Exército Brasileiro”, disse o ministério em resposta ao TCU.
Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acrescentou que a missão do Sinesp é ser um grande agregador de informações produzidas por diferentes órgãos de segurança pública em âmbito civil, estadual e federal. Porém, nunca foi totalmente concluído.
Ele acrescentou que um dos módulos do Sinesp tem como objetivo consolidar informações do Sigma e do Sinarm (Sistema Nacional de Armas), da PF, só que até hoje não aconteceu.
“É um absurdo um país como o Brasil, que tem um problema de violência armada, não ter a integração entre bancos de dados que sirvam para a maioria das investigações. O Sigma sempre foi uma caixa-preta, há armas das Forças Armadas, policiais militares e CACs que ninguém tem acesso e, consequentemente, não consegue fazer o rastreamento”, disse Marques.
Pablo Lira, professor universitário que também é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acrescentou que com a ampliação do acesso a armas de fogo e munição no Brasil é importante realizar a integração dos sistemas para reforçar o monitoramento e fiscalização.
Ele disse que, além da dificuldade de acesso dos dados pelos próprios membros que atuam na segurança pública, há falta de transparência. No Brasil, só é possível ter acesso aos dados criminais e sobre armas e munições por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
“A integração possibilita que a polícia consiga identificar possíveis criminosos, além de ter controle maior de armas que estão sendo disponibilizadas. A gente tem visto indivíduos utilizando o registro de CACs para comprar armas e vender para criminosos, é preciso ter acesso integrado aos dados para investigar e solucionar esse tipo de crime”, disse
O Ministério da Justiça disse que o Sinesp está em integração com o Sigma. “Na próxima semana, haverá uma reunião entre a equipe do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Exército Brasileiro para as tratativas”, disse em nota.
O Exército disse ainda que atende aos pedidos de rastreamento de produtos controlados, feitos por órgãos de segurança pública e autoridades do Judiciário. Tal rastreamento já é possível por meio de consultas aos diferentes bancos de dados do Sistema de Produtos Controlados.
“Sobre a dificuldade de acesso aos dados do Exército, o fato não ocorre, a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados atendeu prontamente a todos os pedidos de informação recebidos de órgãos de segurança pública, ou de autoridades do Judiciário, sobre armas de fogo registradas no Sistema de Gestão Militar de Armas – Sigma”, disse em nota.