Análise de 23.709 ocorrências de desvios de armas evidencia que artefatos mais atraem do que protegem da ação de criminosos; achados também refutam crença de que armas do crime vêm majoritariamente de fora do país
Frequentemente armas de fogo de origem legal terminam nas mãos do crime, o que tende a acontecer ainda mais após as mudanças na legislação que facilitam o acesso de cidadãos comuns a armas de fogo. Mas pouco se sabia a respeito de como ocorre este desvio e o perfil das vítimas.
Na pesquisa “Desvio fatal: Vazamento de armas do mercado legal para o ilegal no estado de São Paulo” foram analisadas 23.709 ocorrências registradas entre os anos de 2011 e 2020. Neste período, houve uma média de 6,49 ocorrências de desvios por dia, sendo que cada ocorrência pode estar vinculada a uma ou mais armas, elevando a média para 9 armas desviadas por dia em 10 anos.
O estudo analisou quando os desvios são mais frequentes e em que locais, quem são os grupos mais vitimados e qual o perfil das armas levadas e revelou que o maior número de ocorrências ocorre em residências. Mas, apesar disso, os locais com maior número de armas desviadas por vez são repartições públicas (fóruns e delegacias), empresas de segurança privada, bancos e residências de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), categoria que recentemente foi beneficiada por mudanças na legislação e aumentaram o tipo e a quantidade de armas que podem ter em casa.
Armas não protegem residências
Outra importante conclusão da pesquisa foi que a maior parte das armas levadas de proprietários legais acontece em contexto de furto (60%), sem uso de violência e muitas vezes sem a presença da vítima, e em segundo lugar roubo (38%). Os meses de dezembro e janeiro, épocas de férias e festividades, momentos onde há mais imóveis vazios e os períodos noturnos são os que concentram mais ocorrências. Somados, estes dados sugerem que os criminosos são atraídos pelas armas que tem grande valor de mercado e preferem atacar locais vazios.
“Portanto, a arma de fogo que tem alto valor no mercado ilegal acaba funcionando mais como um imã para o criminoso do que como um elemento para afastar o crime, o que refuta a crença de que a arma protege a residência”, comenta Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e um dos responsáveis pela pesquisa.
Mercado legal impacta mercado ilegal
Mesmo com problemas de qualidade do registro na Polícia Civil e porcentagem significativa de armas com numeração suprimida, a pesquisa identificou um grupo relevante de armas presente nos dois bancos (de desviadas e apreendidas pela polícia). Com este grupo de armas, foi analisado o tempo médio que cada arma fica no crime e a distância que percorre entre a última posse legal e o uso criminal. Em até um ano, ao menos 54% das armas foram recuperadas. Ainda entre as recuperadas, 45% das apreensões se deram na mesma cidade do desvio, contrariando a crença de que as armas vêm de fora ou circulam grandes distâncias. Um ponto preocupante evidenciado por esta análise é que a arma tão logo deixa a posse legal já começa a ser empregada na atividade criminal, às vezes no mesmo dia.
A pesquisa identificou as cinco armas que são as principais vilãs da segurança pública. Juntos, os modelos respondem por 55% de todas as armas apreendidas do crime.
Ao comparar cada um deste modelo nos dois universos, foi possível verificar que as marcas se repetem quase nas mesmas proporções, indicando que o principal fornecedor destas armas vilãs da segurança é o desvio do mercado legal. “Vejamos o exemplo do revólver calibre .38 que há décadas lidera as apreensões do crime. Dezenas de fabricantes produzem esta arma, mas a proporção e ordem das marcas que aparecem entre as desviadas e apreendidas se repetem quase que de forma espelhada. Esses dados derrubam o mito de que a arma do mercado legal não interfere no mercado do crime”, afirma Langeani.
Casos
A pesquisa também traz as histórias dos maiores desvios para mostrar o impacto negativo desses desvios para a segurança pública. Perto das mais de 23 mil ocorrências do universo analisado, 50 ocorrências representam apenas 0,2% do total de casos, mas respondem por impressionantes 6% de todas as armas desviadas. Esta subseção ilumina quais os grupos de risco que mais trazem prejuízo para a segurança pública, de forma a orientar o reforço prioritário na fiscalização destes. Entre eles estão repartições públicas (como fóruns e delegacias que armazenam por longos períodos e de forma precária armas e munições, empresas de segurança privada e residências de CACs.
Recomendações
“As flexibilizações e perdas de controle no mercado legal interferem diretamente no abastecimento de armas do crime. Portanto, a ampliação do mercado legal e a permissão de que cidadãos comuns tenham acesso a armas mais potentes tem o poder de gerar o mesmo efeito no mercado criminal”, comenta Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
Além de interromper e reverter a série de flexibilizações de compra de armas realizadas pelo Governo Federal nos últimos anos, o Instituto Sou da Paz recomenda que é importante intensificar a fiscalização nos grupos que, mesmo com menos ocorrências, respondem por um maior número de armas desviadas.
“É preciso políticas que em primeiro lugar analisem de forma criteriosa quem pode acessar armas de fogo, e em segundo lugar atuar na prevenção de r desvios e que ajudarão a diminuira disponibilidade de armas legais no mercado ilegal”, diz Carolina.
Especificamente para São Paulo, a pesquisa chama atenção para a baixa qualidade da identificação e qualidade do dado de armas apreendidas na Polícia Civil. Trinta por cento das armas apreendidas e levadas até a Polícia Civil para registro não têm sua marca identificada. Para além da necessidade urgente de melhorar a qualidade deste registro, é imprescindível que esta Força avance na criação de uma delegacia especializada, dedicada exclusivamente a rastrear armas apreendidas e combater o mercado ilegal de armas do estado de São Paulo.
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Izabelle Mundim e Rayane Figueiredo – imprensa@soudapaz.org