Extravio de munição foi descoberto durante vistoria em 2017; até hoje, a PM não sabe onde os cartuchos foram parar
Por Rafael Soares (leia a matéria completa publicada no jornal O Globo)
Em novembro de 2017, uma vistoria constatou um grande sumiço de munição no Palácio Guanabara, sede do governo do Rio. Na ocasião, um tenente que havia assumido a chefia da reserva de material bélico da 1ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM) — unidade da PM localizada no terreno do palácio e responsável pela segurança do local — produziu um relatório apontando o extravio de 74 mil cartuchos. O texto afirma que projéteis de 19 lotes diferentes que deveriam estar no paiol do palácio, segundo o sistema informatizado de gestão de munição da PM, simplesmente desapareceram. Passados quatro anos, a corporação ainda não sabe onde os cartuchos foram parar.
O Inquérito Policial Militar (IPM) aberto para apurar o extravio expõe o descontrole na gestão de munição na corporação. Segundo a investigação, a discrepância entre a quantidade de cartuchos encontrada no paiol e aquela que aparece no sistema da corporação é explicada por um “desajuste administrativo gerado pelo somatório de problemas ocasionados por falhas humanas e prejuízos causados por fenômenos da natureza”.
De acordo com a investigação, documentos que poderiam esclarecer onde foi parar parte da munição extraviada foram destruídos em enchentes que inundaram a reserva de material bélico. Também foram detectadas falhas na alimentação de dados no sistema por policiais que trabalhavam no paiol — como, por exemplo, a não inserção dos números dos lotes utilizados durante treinamentos. O IPM, que não indiciou qualquer policial pelo extravio, foi remetido para o Ministério Público.
Nas mãos de bandidos
Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, fragilidades na gestão de munição, como o controle em papel, beneficiam o crime.
— Hoje, não há mais empecilho para se fazer um bom controle. Não há motivos para que ainda haja controle de munição em papel. Só quem se beneficia disso é a criminalidade, porque facilita desvios — afirma o especialista.
O GLOBO descobriu que projéteis de quatro dos lotes extraviados foram apreendidos pela polícia em ações criminosas. Um deles é o APN12, calibre ponto 40, para pistolas. Segundo a vistoria, 1.312 cartuchos do tipo desapareceram do paiol. Projéteis do mesmo lote foram achados na cena de uma chacina com cinco mortos — a menina Rayanne Cardoso Lopes, de 10 anos, entre eles — e sete feridos em Anchieta, na Zona Norte, em junho de 2020. De acordo com a investigação, os projéteis desviados da PM foram usados, na ocasião, por traficantes do Chapadão para matar criminosos rivais que estavam numa festa junina.
Lotes de munição para fuzil também estão na lista dos cartuchos que sumiram do paiol do Palácio Guanabara e foram apreendidos com criminosos. Faltavam na reserva, por exemplo, 3.410 projéteis de calibre 5,56mm do lote BQJ03. Cartuchos desse mesmo lote foram apreendidos, em março de 2018, na casa de um integrante da maior milícia do Rio, chefiada por Wellington Braga, o Ecko — criminoso mais procurado do estado, morto pela polícia no último dia 12. Ao todo, policiais encontraram dez cartuchos do lote com o miliciano.
Não é possível, porém, comprovar que os projéteis encontrados com criminosos saíram do Palácio Guanabara. Isso acontece porque lotes grandes, como o BQJ03, têm mais de dez mil cartuchos e abastecem dezenas de batalhões — o que torna impossível o rastreamento. Em abril do ano passado, o Exército publicou uma portaria que tinha como objetivo diminuir o número de cartuchos por lote, para facilitar o controle da munição. O texto determinava que, “a cada dez mil unidades comercializadas, deverá ser utilizado um único código de rastreabilidade, podendo ser marcadas frações menores até um mínimo de mil unidades”. O presidente Jair Bolsonaro determinou, horas após a publicação, a revogação da portaria.
Questionada sobre o paradeiro dos projéteis que sumiram do Palácio Guanabara, a PM alegou que, “em função de descontrole administrativo à época, o encarregado do IPM não identificou a autoria do extravio, o que prejudicou o rastreio do material supostamente extraviado”. A corporação também afirmou que “está em processo de implantação a digitalização das reservas de material bélico, que permite um controle mais efetivo, com cadastramento biométrico dos PMs, registrando a posse e a devolução de armas e munição”.