Com flexibilizaçao da legislação, até 60 armas, sendo até 30 de uso restrito, 180 mil munições por ano e até 20 quilos de pólvora
Por Aline Ribeiro (leia a matéria completa publicada pelo jornal O Globo)
Em meio à flexibilização do acesso a armas de fogo e munições no Brasil, o Exército Brasileiro reduziu o orçamento e o efetivo destinados às operações de fiscalização de lojas de produtos controlados, de clubes de tiros e de colecionadores, caçadores e atiradores (CACs) durante o governo Jair Bolsonaro.
Os recursos empregados pelo Exército para combater possíveis fraudes, que vão desde irregularidades na documentação e no armazenamento até o desvio de arsenal para o crime organizado, apresentou queda nos dois anos e meio do atual governo. Em 2020, o montante destinado a essas operações foi de R$ 3 milhões, 15% a menos do que em 2018 e 8% a menos do que em 2019. Até maio deste ano, o órgão não investiu nem um décimo desse valor. Antes de Bolsonaro assumir, os custos com esse controle vinham numa tendência de crescimento. De 2016 a 2018, houve um acréscimo de 18% da verba. Apesar do encolhimento, o órgão informou ter aumentado o número dessas operações no mesmo período.
Assim como o orçamento, o efetivo alocado nesses eventos também sofreu redução. No ano passado, 2.121 militares atuaram em operações de fiscalização, número 28% menor que em 2018 e 54% menor que em 2019. Os dados são do Exército Brasileiro e foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação pelos institutos Sou da Paz e Igarapé, a pedido do GLOBO.
— Os sistemas de controle e rastreamento são uma forma de agir preventivamente para evitar que armas de fogo e munições desviem de sua trajetória e migrem para o mercado ilegal — disse Melina Risso, diretora do Instituto Igarapé. — Precisamos entender que tipo de fiscalização está sendo feita. Vimos casos recentes de desvios porque a fiscalização não era in loco, não existiu a checagem cara-crachá, para garantir a correspondência física do que está no papel.
No dia 19 de julho, a Polícia de São Paulo prendeu três pessoas suspeitas de participarem de um esquema de venda de fuzis para criminosos. Segundo as investigações, um dos suspeitos é atirador esportivo e falsificou documentos para traficar armas. Ele usou seu registro para comprar dois fuzis. Em seguida, encomendou mais 21 armas, usando os nomes da mulher, de vizinhos e de pessoas que tiveram documentos roubados. Nem a fabricante de armas nem o Exército detectaram o crime.
Explosão de arsenal
Ao mesmo tempo em que a fiscalização consumiu menos recursos e efetivo, explodiu o número de pessoas com acesso a arsenal letal, de lojas de armas e de clubes e entidades de tiros. Segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 o Brasil tinha 286,9 mil cidadãos com o certificado emitido pelo Exército para autorizar a coleção, a prática de esportes e a caça, o chamado Certificado de Registro (CR). O número representa um acréscimo de 43% em relação aos 200,1 mil registrados em 2019.
As lojas de armas, estandes e clubes de tiros também apresentaram um salto expressivo. Segundo dados do Exército, obtidos pelo Igarapé, 2.053 lojas de armas de fogo estavam ativas em 2020, um aumento de 24% em relação ao ano anterior. Já as entidades voltadas para o treino de tiro desportivo apresentaram um aumento sem precedentes. Em 2020, havia 1.345 estandes e clubes em operação no país, 791% mais que em 2019.
Desde que assumiu, o presidente Jair Bolsonaro assinou 32 atos, entre decretos, portarias e projetos de lei contrários ao Estatuto do Desarmamento. Sob seu governo, as regras ficaram mais frouxas, e o poder de fogo permitido aos cidadãos, em especial aos CACs, expandiu. Antes, um atirador desportivo podia ter acesso a mais armamento à medida que evoluía no grau de competição. O limite era de 16 armas, 60 mil munições e 12 quilos de pólvora. Agora, qualquer atirador, independentemente da experiência, pode adquirir até 60 armas, sendo até 30 de uso restrito; 180 mil munições por ano; e até 20 quilos de pólvora.
— Não se trata de criminalizar toda a categoria, mas sim de dizer que um único mal-intencionado tem potencial de dano enorme — afirmou Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz. — A função da fiscalização vai além de identificar pessoas de má-fé. Ela tem esse caráter técnico de corrigir falhas de segurança, por exemplo, no acesso ao estoque, e evitar que essas armas sejam levadas para a violência armada.
São recorrentes os casos de furtos de armas e munições de entidades de tiros. Num dos mais recentes, no começo de junho, um estande em Cabedelo, na Paraíba, foi arrombado e criminosos levaram sete armas e 400 munições. Em 2018, alunos de um clube de tiros em São Paulo reagiram a um assalto na porta da entidade e metralharam o carro dos bandidos.
Visita surpresa
A reportagem pediu ao Exército para acompanhar uma operação de fiscalização, mas teve a solicitação negada pela “impossibilidade de assegurar plena proteção à integridade física dos profissionais de imprensa, bem como pelo caráter sigiloso das operações”. Requereu então entrevistas com os responsáveis por essas vistorias, que foram recusadas.
Segundo atletas, donos de lojas e clubes de tiros ouvidos pelo GLOBO, as operações de fiscalização, em geral, ocorrem com uma equipe com cerca de três militares – um oficial e dois praças. Os fiscais chegam à loja de produtos controlados sem aviso prévio e conferem, entre outros itens, condições de segurança de cofres, estoque de armas e munições e documentação dos clientes. No caso dos clubes de tiros, verificam a assiduidade dos atletas, que têm uma meta anual de competições e treinos a cumprir, além da regularidade das armas.
O economista Luan Ramos, de 27 anos, é dono de duas lojas de produtos controlados e de um clube de tiros em Brasília. Ele explica que toda arma tem um número de série, assim como o chassi de um carro, de modo que o sistema do Exército consiga controlar sua trajetória do dia em que sai da indústria até chegar às mãos do consumidor. Luan diz que é fiscalizado, em média, duas vezes por ano e que os militares costumam permanecer na loja durante um período inteiro, às vezes até o dia todo, sempre agindo com “rigor levado ao extremo”.
— Eles chegam de surpresa para ver se pegam algum lojista desatento com alguma regra, fiscalizam o operacional da empresa, de ponta a ponta. Já no clube de tiros avaliam irregularidades na prática do esporte. O clube é o guardião da legislação lá dentro. Dentro do estabelecimento, ele é responsável por fazer com que a legislação seja seguida à risca — explicou Ramos.
Para pessoas físicas com acesso a armas – os colecionadores, atiradores e caçadores -, a fiscalização funciona por denúncia ou amostragem, de acordo com Ramos. Antes da vistoria do acervo em residência, o Exército deve comunicar a ação ao fiscalizado com 24 horas de antecedência, conforme previsto em portaria.
O empresário Thyago Almeida Pignataro, de 33 anos, é atleta profissional, tem loja de armas e clube de tiro. Segundo ele, como lojista e dono de clube, é fiscalizado de duas a quatro vezes por ano. Como atirador, foi fiscalizado uma única vez desde que tirou o registro, em 2008.
— Eles ligaram com algumas horas de antecedência, para confirmar se eu estaria em casa. Os fiscais olham se todas as armas registradas no nome da pessoa estão lá, se as condições de armazenamento estão boas, se tem algo errado na casa — lembrou Pignataro.
Nos dados enviados por meio da Lei de Acesso à Informação, o Exército afirmou ter feito 7.234 operações de fiscalização em 2020, número 124% maior que em 2018 e 47% maior que em 2019. Lojistas, donos de clubes e CACs que descumprem as regras podem ter seus registros e atividades suspensos e até cancelados.
A respeito da diminuição de efetivo e orçamento das fiscalizações, o Exército informou, em nota, que todo o órgão “pode ser empregado junto às equipes técnicas, não sendo considerada significativa a referida redução”. Sobre o aumento de lojas de armas, clubes de tiros e CACs, disse que “a sistemática de fiscalização foi descentralizada para que as ações continuem ocorrendo de acordo com o mesmo padrão de efetividade, prevendo o desencadeamento de operações dentro da área de responsabilidade de cada Região Militar”.
Também afirmou que não há previsão de aumento de efetivo nem de orçamento. “O efetivo empregado dentro do Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC) permanece o mesmo, sem previsão de aumento. Não existe previsão de aumento do orçamento para as atividades de fiscalização de produtos controlados para a Lei Orçamentária Anual 2022”.
A respeito do crescimento das fiscalizações com menos orçamento e efetivo, o Exército disse que, em 2018 e 2019, as operações realizadas eram centralizadas “em uma janela de operações pré-definidas pela Diretriz de Fiscalização”. Em 2020, segundo a nota, “a sistemática de operações foi modificada, sendo as mesmas realizadas de forma descentralizada pelas Regiões Militares, levando a um aumento do número de fiscalizações”.