Artigo escrito pelo gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, publicado no jornal Folha de S. Paulo. Acesse o artigo no veículo.
O mega-assalto a banco ocorrido em Araçatuba (SP) chocou o Brasil na segunda-feira (30). Apesar de essas ações serem comuns no país, esta em especial chamou a atenção pela organização dos criminosos, que usaram drones para monitorar a polícia e fizeram os reféns de escudo humano sobre os veículos.
Além disso, dezenas de dispositivos explosivos improvisados foram deixados na região central da cidade para dificultar o deslocamento das forças de segurança. Um destes artefatos explodiu, lesionando gravemente um morador.
É notório que esse tipo de crime não sobrevive sem três insumos básicos: armas de grande poder de fogo, munições e explosivos. O que muitos desconhecem é que o acesso a esses artefatos foi facilitado, e sua rastreabilidade, significativamente deteriorada nos últimos três anos.
Desde 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aumentou em quatro vezes a potência de armas liberadas para uso de civis. Na prática, modelos de pistolas (como 9mm e .40), bastante usados nesses crimes e antes restritos às forças de segurança, passaram a poder ser comprados por qualquer pessoa.
Além disso, fuzis semiautomáticos em calibres equivalentes aos usados pelas Forças Armadas, como o 556 e o 762mm, foram liberados para mais de 200 mil pessoas registradas no Exército como atiradores esportivos, colecionadores ou caçadores (CAC). Cada CPF pode adquirir até 30 desses fuzis.
Área isolada pela polícia, onde um morador da cidade foi atingido por explosivo Clayton Khan/Folhapress
Soma-se a isto o fato de que, na infraestrutura de controle e rastreabilidade, o Exército Brasileiro descumpre há 16 anos uma obrigação legal definida por um decreto de 2004. O texto determina que o banco de dados (Sigma) do Exército, que registra essas e outras armas de calibre restrito, seja integrado ao banco de dados da Polícia Federal, tornando suas informações mais acessíveis para uso em investigações. O que, mesmo após novo prazo em 2019, segue sem acontecer.
Na prática, como denunciado por Igor Gielow na Folha, não há hoje um delegado das Polícias Civil ou Federal com acesso ao Sigma. Isso quer dizer que, se um policial precisar rastrear um fuzil apreendido ou checar quantas armas um suspeito tem registradas no Exército, precisa enviar um ofício ou um email, dificultando e atras ando bastante as investigações.
No campo das munições, desde 2019, todos os limites anuais de compras foram aumentados para civis, policiais e outras categorias.
Para os CACs, contudo, o novo limite não leva mais em conta o tempo de atividade ou profissionalização. Um atleta olímpico de tiro tem a mesma cota que um recém-chegado. São até 5.000 munições por ano por arma de calibre permitido e 1.000 para a de calibre restrito. Essa cota anual ganhou ainda um brinde: 20 kg de pólvora para recarga caseira, atividade cujas máquinas foram retiradas do controle público.
É desnecessário dizer que essas munições são totalmente fantasmas, já que não podem ser rastreadas e nem demandam prestações de contas sobre o seu uso.
Após muita pressão e na esteira de escândalos de desvios, o Comando Logístico do Exército publicou, em abril de 2020, uma nova portaria (61 COLOG) sobre a marcação de munições vendidas às Forças de Segurança. A principal inovação foi incentivar a marcação em lotes menores (de até mil munições) com o mesmo código. Isso previne desvios e facilita a identificação de funcionários corruptos envolvidos em fornecimento de cartuchos para o crime.
Foi esse tipo de marcação que permitiu identificar e prender um bombeiro militar, lotado na Presidência da República, por desvio de munições de fuzil para facções do Rio de Janeiro.
Ocorre que esse aperfeiçoamento das regras não durou 24 horas. Jair Bolsonaro, sem dar explicações, determinou pelo Twitter que a portaria fosse para o lixo. O Exército silenciou e obedeceu.
O presidente Jair Bolsonaro defende o porte de armas em publicação no Instagram Reprodução/Instagram
No mesmo grupo do que foi descartado, havia uma portaria (46 COLOG), também publicada em 2020, que melhorava sensivelmente a marcação e rastreabilidade de explosivos e outros produtos usados nesses ataques (como cordéis e espoletas).
Os itens deveriam receber identificações únicas e de fácil leitura, como QR Codes. Deveriam ainda conter dispositivos químicos ou mecânicos internos que sobrevivam à explosão e permitam a perícia identificar fabricante e lote do produto usado. Toda cadeia seria monitorada em tempo real com fabricantes, comerciantes e usuários, alimentando um sistema único do Exército, cujo acesso de consulta seria concedido às polícias.
Essa plataforma, denominada Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados, poderia estar implantada desde novembro de 2020, auxiliando a polícia a esclarecer o caso de Araçatuba e outros ocorridos recentemente.
Só que, mesmo depois de investir recursos públicos e vários meses de trabalho, o Exército preferiu atender ao pedido do presidente e revogou a portaria.
Estes retrocessos ordenados por Bolsonaro —com o silêncio anuente dos ministérios da Justiça e da Defesa e do comando do Exército— são inexplicáveis dada a gravidade e o trauma causados pelos ataques perpetrados pelo crime organizado.
Mas há falhas indesculpáveis também de governos estaduais. Apenas dois estados em todo o território nacional (Rio de Janeiro e Espírito Santo) têm delegacias especializadas em tráfico de armas, com atribuição para rastrear sistematicamente artefatos apreendidos e perseguir quem fornece armas para o crime.
Vários outros estados nem sequer conseguem informar quais são as marcas e calibres que mais alimentam a violência em seu território.
Ainda que várias das mudanças aqui pontuadas sejam ilegais e inconstitucionais, já que invadiram a competência do Congresso, ou carecem de justificativa e interesse público, elas seguem ativas enquanto aguardam análise do Legislativo, do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União.
É certo que o fenômeno do novo cangaço e as quadrilhas de roubo a banco não foram criadas no governo Bolsonaro, mas é inegável que as mudanças feitas por ele facilitou essas modalidades criminosas.
Bruno Langeani
Gerente do Instituto Sou da Paz e mestrando de Políticas Públicas da Universidade de York (Inglaterra)