Instituto Sou da Paz lança a pesquisa “Menos Armas Mais Jovens: Violência Armada, Violência Policial e Comércio de Armas”, feita em parceria com a organização europeia Terre des Hommes
O Brasil precisa investir em políticas públicas que combatam o uso excessivo da força por polícias, o que atinge especialmente jovens e adolescentes negros, em políticas que evitem desvios de armas de arsenais públicos e que fortaleçam o combate ao tráfico de armas. É para o que chama atenção a pesquisa inédita “Menos Armas Mais Jovens: Violência Armada, Violência Policial e Comércio de Armas”, produzida pelo Instituto Sou da Paz em parceria com a organização europeia Terre des Hommes.
Com dados inéditos sobre o perfil das armas apreendidas pelas polícias em quatro estados (BA, PE, RJ e SP) e pelas polícias federais, nos anos de 2018 e 2019, a pesquisa destaca que 55% delas eram de marcas brasileiras (ou 82% entre as com informação sobre a origem), sendo 6% do total de origem europeia.
O relatório também tem um chamado à responsabilidade de países que exportam armas para o Brasil. Entre as armas de maior potencial letal, a participação de armas europeias é muito maior: 18% de todas as pistolas, 11% de todas as submetralhadoras e 8% de todos os fuzis apreendidos são europeus. Fuzis e submetralhadoras são armas que disparam em rajadas e podem perfurar paredes e outros anteparos, gerando maior vitimização, como os frequentes episódios de bala perdida.
“Com a abertura do mercado brasileiro e a diminuição do controle de compras policiais, mais forças públicas estaduais estão realizando licitações internacionais”, comenta Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz. “Portanto, é importante alertar países que exportam ao Brasil sobre os riscos de armas vendidas ao país serem usadas em violações de direitos humanos ou serem desviadas para o mercado ilegal”.
“Queremos sensibilizar o público alemão e suíço, especialmente os políticos e os governos, sobre a dimensão da violência no Brasil em geral e por parte da polícia”, diz Ralf Willinger, assessor de prevenção da violência da organização Terre des Hommes. Willinger acrescenta que o relatório evidencia como é arriscado exportar armas para o país. “Nosso objetivo é que a Alemanha e a Suíça suspendam todas as exportações de armas para o Brasil por causa das graves violações de direitos humanos cometidas por instituições estatais e pelas fragilidades de controles dos arsenais e do mercado de armas”, diz.
Segundo as organizações, esses riscos precisam ser considerados tanto para o cumprimento de acordos internacionais assinados pelos países exportadores, como o Tratado de Comércio de Armas, quanto pelas empresas exportadoras, para evitar danos de imagem. O relatório evidencia que já há precedentes motivados pela sequência de evidências de falta de controle da circulação de armas e munições no Brasil que foi exposta na investigação da execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, cometida por ex-policiais, com uso de munição estatal e com uma arma de marca europeia possivelmente desviada da polícia. O caso provocou a desistência de empresas estrangeiras em vender armas ao Brasil, como a empresa alemã Heckler & Koch, que em agosto de 2020 declarou que não exporta mais para o Brasil, e o caso da empresa suíça de munições RUAG, que desistiu de abrir uma fábrica aqui.
A pesquisa avança ao trazer dados inéditos sobre desvios de armas e munições de arsenais de instituições de segurança pública e militares. Entre apenas quatro polícias estaduais (do total de 54) houve 185 armas desviadas no período de 5 anos. Nas forças federais (incluindo Forças Armadas e polícias federais) houve desvio de 323 armas e 18 mil munições no mesmo período.
No documento, é possível acessar de forma resumida as flexibilizações no mercado de armas, implementadas desde 2019. Com a facilitação do processo de compra e de porte e o aumento da potência de armas liberadas a civis, houve uma explosão no número de armas compradas também por pessoas comuns. O Instituto Sou da Paz sinaliza que estas questões já seriam preocupantes sob a perspectiva da segurança, mas alerta que estas mudanças são ainda mais graves porque vieram desacompanhadas de melhorias nos processos de marcação, rastreamento e fiscalização. “Na prática estamos avançando para um cenário de difusão de armas, sem controle e fiscalização eficazes e com pouca possibilidade de investigação pelas polícias”, afirma Natália Pollachi.
Casos emblemáticos
O relatório descreve oito casos emblemáticos: sete casos de assassinatos em que armas europeias foram utilizadas ou em que há indícios fortes de abuso no uso da força policial, e um caso retratando desvios de armas do poder público do mesmo modelo de submetralhadora usado na execução de Marielle Franco e Anderson Gomes. Estão incluídos os casos das chacinas de Messejana no Ceará e da Cabula na Bahia, ambas ocorridas em 2015, praticadas por policiais com uso de armas e munições institucionais. Apenas estes dois casos somam 23 jovens mortos. Outro caso de destaque é do homicídio do adolescente Juan Ferreira, de 16 anos, no bairro de Sapopemba, em São Paulo, em maio de 2020. O caso tem diversos indícios de abuso policial, mas sequer teve seu inquérito concluído após mais de um ano.
Jovem moradora da zona leste de São Paulo, a mãe de Juan (que prefere não se identificar) mostra que entende perfeitamente o que é um exercício ético e o devido processo legal, ao contrário de muitas pessoas que criminalizaram e justificaram a morte de seu filho. Sobre o caso, ela verbaliza: “independente do que meu filho fez, queria apenas que ele tivesse tido o direito de responder.”
Para Raifa Monteiro, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) de Sapopemba, a maneira que o Estado se apresenta nas periferias é através de violência e da criminalização da pobreza. “Infelizmente, Juan foi um adolescente vítima de um Estado injusto, forjado pela brutalidade do colonialismo e de nossa negada formação eugenista que aplica à sua revelia a pena de morte selecionando apenas os ‘matáveis’ para compor as estatísticas”, diz. O Cedeca acompanha o andamento do caso da morte do adolescente Juan.
Natália Pollachi comenta que o Instituto Sou da Paz sempre defendeu que as polícias tenham acesso ao melhor material disponível para realizar seu trabalho, sejam armas, munições, viaturas ou coletes, mas que é preciso apontar as falhas que facilitam que produtos que deveriam ser usados para a segurança coletiva sejam empregados em violação de direitos. “A atual falta de controle sobre arsenais e sobre o uso da força por diversas polícias é um facilitador da violação de direitos que atinge especialmente jovens negros. Neste contexto, é natural que as instituições brasileiras sofram pressões para se adequarem de forma satisfatória para evitar a repetição dos casos retratados no relatório”, comenta. “Já testemunhamos diversos períodos de queda na letalidade, como o período atual vivido em São Paulo. Apesar da letalidade ainda estar muito alta, essas quedas apontam que há alternativas e políticas capazes de alterar esta realidade no curto prazo”, conclui.
Acesse o relatório e o infográfico com os principais destaques.
Informações para imprensa:
Instituto Sou da Paz: Izabelle Mundim – izabelle@soudapaz.org
Terre des Hommes: Ana Mesquita – a.mesquita@tdh-latinoamerica.de