Com a economia precisando de atenção, Bolsonaro gasta energia demais na cruzada por uma política bélica mais liberal.
Por João Pedroso de Campos e Juliana Castro (leia a matéria completa publicada pela VEJA)
Jair Bolsonaro foi às redes sociais no último dia 9 fazer um anúncio pelo qual ansiava desde o início do mandato. Com uma imagem em que aparece com uma arma na mão direita e um alvo a sua frente, o presidente comemorou ter zerado, a partir de 2021, a alíquota de 20% do imposto de importação de revólveres e pistolas. A iniciativa depois foi barrada no STF, mas chamou a atenção pela insistência com que o presidente se dedica a uma cruzada particular para a facilitação da compra, porte e posse de armas no país, uma das estrelas da chamada agenda conservadora empunhada na eleição de 2018 e talvez a pauta que tenha merecido mais afinco da parte dele nesses quase dois anos de mandato. Como se a economia não estivesse a demandar maior atenção e uma pandemia não angustiasse o país, com mais de 183 000 mortos.
O empenho na pauta bélica pode ser medido pela proliferação de documentos editados a esmo pelo governo, sem nenhuma discussão com a sociedade ou com o Parlamento: foram dez decretos, catorze portarias e dois projetos de lei, segundo levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz. Entre as iniciativas para armar a população —parte delas suspensa — estão a autorização para que cada pessoa registre quatro armas (eram duas), a permissão de posse a moradores de áreas rurais, a inclusão de mais vinte categorias profissionais entre aquelas autorizadas a ter armas, o aumento do limite anual de cinquenta para 200 (depois, 550) munições e a revogação de três portarias do Exército que possibilitavam o rastreamento e o controle de armamentos. Também facilitou a vida de colecionadores e praticantes de tiro ao ampliar o leque de equipamentos que podem ser adquiridos, inclusive fuzis 556 e 762.
A opção por regulamentações pontuais é uma estratégia do governo para contornar a falta de disposição do Legislativo — notadamente do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) — em fazer avançar as pautas conservadoras, que incluem outras bandeiras da campanha como a redução da maioridade penal e a adoção do homeschooling, como conta um de seus articuladores políticos, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, em entrevista a VEJA. Segundo ele, o governo vai apoiar candidatos nas duas Casas do Congresso que se mostrem comprometidos em avançar esses temas em 2021.
A oposição parlamentar ao assunto já havia ficado clara em junho de 2019, quando o Senado revogou um decreto que flexibilizava o porte e a posse de armas e obrigou o governo a rever a sua estratégia. O sistema de contrapeso à ofensiva armamentista também se manifestou na semana passada, quando o ministro Edson Fachin, do STF, suspendeu a extinção da alíquota sobre importação até que o plenário decida. Questionamentos à Justiça deixaram outras normas no limbo, como a ampliação de categorias autorizadas a usar armas, aumentando a confusão em torno do tema, segundo Felippe Angeli, gerente de relações institucionais do Instituto Sou da Paz “Não é bom para o país que ninguém entenda o que está valendo”, diz.
Em meio ao caos normativo, no entanto, a pauta foi avançando e suas consequências estão explícitas no armamento recorde da população. Dados da PF mostram que, entre janeiro e novembro deste ano, foram registradas 109 734 novas armas por cidadãos comuns, um aumento de 102% em relação a todo o ano passado. Apesar de as estatísticas comprovarem a ampliação desse mercado no país, alguns consideram tímidas as mudanças. “Bolsonaro tem boa vontade, mas com a legislação que existe ainda é muito difícil comprar uma arma no Brasil”, avalia Misael de Sousa, cuja empresa representa a alemã Sig Sauer no país. Ele é um dos lobistas desse setor com portas abertas no governo — só nos primeiros cinco meses da gestão Bolsonaro, além de Sousa, representantes das brasileiras Taurus, CBC e DelFire Arms, da tcheca CZ e da austríaca Glock despacharam trinta vezes nos ministérios da Justiça, Casa Civil e Defesa.
A obsessão pelo armamento da população é uma conhecida bandeira da direita mundial, notadamente nos Estados Unidos, país que serve de inspiração para Bolsonaro e seus filhos. Dos muitos movimentos do presidente, a tentativa de tarifa zero para a importação talvez seja o mais importante para a família presidencial — e, de quebra, agrada às fabricantes estrangeiras. Fazia apenas seis dias que o pai estava no governo quando o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) comemorou a chegada de sua pistola Glock importada, enquanto reclamava dos impostos. Dizia que a operação demorava, em média, quase um ano e que a arma custava 10 000 reais no Brasil enquanto nos EUA era encontrada por 2 500 reais. A marca austríaca é a favorita da família — era uma Glock a pistola roubada de Bolsonaro durante um assalto ao então inexpressivo deputado federal no Rio de Janeiro, em 1995. “Isso de zerar a tarifa é coisa do Eduardo. Lamentavelmente, o presidente se deixou levar”, diz um aliado.
O Zero Três não assumiu ser o pai da ideia, mas foi o primeiro da família a lamentar a decisão de Fachin de suspender a medida, pela qual o governo abriria mão de 230 milhões de reais anualmente em impostos, algo que não incomodou a equipe de Paulo Guedes. “Efeito financeiro muito baixo”, classificou o próprio ministro da Economia. “O governo tira um imposto que reflete no bem comum para dar isso a uma categoria específica”, critica Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé, um think tank dedicado a discutir segurança. Para se ter uma ideia do valor da renúncia, o Butantan vai gastar 160 milhões de reais na nova fábrica de vacinas que irá produzir a CoronaVac.
Além da pregação da família presidencial pela política liberal bélica, há uma antiga cisma de Eduardo com a Taurus, maior fábrica de armas de fogo da América Latina, sediada em São Leopoldo (RS), e sua preferência por modelos estrangeiros. Em agosto de 2016, criticando o monopólio da empresa e citando disparos acidentais com armas Taurus, ele celebrou as assinaturas para uma CPI contra a fabricante. “Reitero meu desejo de abrir o mercado nacional com olhos à livre concorrência e melhora do produto ao consumidor”, disse. Fundada em 1939, a Taurus detém 85% do mercado nacional. A CPI contra a companhia nunca foi aberta. Na mesma linha do irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) também quer elevar a oferta de armas. Seu primeiro projeto no Senado foi para autorizar a instalação no país de fábricas civis de armas de fogo e munições. As iniciativas incomodam militares, que defendem o fortalecimento de uma fabricante nacional como ponto estratégico de defesa.
Apesar de a pauta armamentista ter avançado pouco no Congresso, seus defensores planejam nova investida no Parlamento. A bancada da bala ainda espera aprovar um projeto do Executivo que autorize porte de armas a militares, policiais, bombeiros, guardas municipais, entre outros, mesmo fora do exercício da função. Em paralelo, Eduardo Bolsonaro quer revogar o Estatuto do Desarmamento. Sancionado em 2003, no primeiro ano do governo Lula, ele impôs regras e penas mais duras relacionadas à circulação de armas. Para justificar seu plano, o Zero Três citou na última semana o plebiscito de 2005. “Mais de 59 milhões votaram pelo fim do Estatuto do Desarmamento”, exagerou (na verdade, a população foi consultada sobre um artigo específico, referente ao comércio de armas, e mostrou-se a favor da manutenção dele).
Quando se analisam as pesquisas recentes, o cenário mostra os brasileiros bem cautelosos com relação a esse tema que tanto apaixona o Palácio do Planalto. Levantamento do Datafolha realizado em maio evidenciou que só 24% concordavam com a frase do presidente dita na célebre reunião ministerial de abril: “Quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Pesquisa Ibope divulgada na quarta 16 mostra que, apesar dos esforços para armar a população, a avaliação positiva em segurança pública caiu 7 pontos entre setembro e dezembro — e, pela primeira vez, a maioria (53%) reprova a atuação do governo federal nessa área. Ainda assim, a censura popular é menor do que as destinadas às ações na saúde (60%), ao combate ao desemprego (62%) e aos altos impostos (70%). Esses números mostram que o Palácio do Planalto está mirando no alvo errado ao priorizar uma promessa de campanha. É um equívoco ignorar urgências e gastar energia com um tema apenas para satisfazer o fetiche bélico da família presidencial e de uma parcela de apoiadores radicais. Em resumo, um verdadeiro tiro no pé.