Leia o Editorial completo publicado pelo O Estado de S. Paulo
Acusado pelo ex-ministro da Justiça de tentativa de ingerência sobre a Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro entrou também na mira do Ministério Público Federal (MPF) por indícios de violação à Constituição ao interferir em atos de exclusividade do Exército quando, no dia 17, revogou três portarias do Comando Logístico do Exército (Colog) sobre monitoramento de armas e munições.
As portarias foram elaboradas por militares, policiais federais e técnicos do Ministério da Justiça, após recomendação do MPF. Ao investigar os projéteis utilizados para executar a vereadora carioca Marielle Franco, o órgão identificou falhas no sistema de distribuição de armas e munições. O segmento bancário também pressionou o Exército pelo controle de explosivos. Dados do setor indicam que mais de 90% das explosões de carros-fortes e caixas eletrônicos são feitas com explosivos extraviados de pedreiras.
Para o controle de explosivos, o Exército baixou a Portaria 46. As Portarias 60 e 61 estabeleciam, respectivamente, a identificação de armas de fogo fabricadas no País, exportadas ou importadas, e a normatização de atividades de colecionamento, tiro desportivo e caça.
O texto do Diário Oficial que cancelou as portarias não apresentou qualquer justificativa. Nas redes sociais, o presidente disse apenas que elas não se adequavam “às minhas diretrizes”. Já o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi mais explícito: “CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) sempre apoiaram Bolsonaro para que tenhamos pela primeira vez um presidente não desarmamentista. É inadmissível que o Colog faça portarias restringindo a importação. A quem isso interessa?”.
A resposta é fácil. Como apontou o MPF, as orientações concretizavam os princípios do Estatuto do Desarmamento e “preenchiam relevante lacuna” no rastreamento de produtos controlados pelo Exército. Trata-se de medida comumente aplicada pela comunidade internacional, que, além de tudo, serviria de precedente para aprimorar o controle sobre uma série de outras mercadorias cujo roubo abastece o crime organizado.
Assim, a verdadeira dúvida é a quem interessa a revogação. “O presidente tem uma reclamação muito específica de atiradores e colecionadores”, disse Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz. Segundo ele, “nem todas, mas várias dessas pessoas abastecem o crime”. É o caso, por exemplo, do ex-sargento Ronnie Lessa, apontado como um dos assassinos de Marielle Franco, e do Capitão Adriano, ligado à família Bolsonaro e morto numa operação policial na Bahia, que, segundo investigações em curso, utilizavam as suas carteiras de CAC para comprar livremente armamentos que municiavam suas milícias. Para piorar, depois de aumentar em quatro vezes a potência de fogo das armas que civis podem ter em casa, o governo aumentou em 12 vezes a cota de munição. Com isso, o número de projéteis comprados por uma única pessoa poderá chegar a 6.600 por ano.
A procuradora da República Raquel Branquinho, responsável pela apuração da ordem dada por Bolsonaro, diz “não restar dúvidas” quanto à competência do Exército para fiscalizar armamentos, e que não há espaço na Constituição “para ideias e atitudes voluntaristas” do presidente. Com efeito, ela sugere que a revogação das portarias pode ter a finalidade de “atender uma parcela de eleitores”. Segundo a procuradora, a derrubada das portarias “representa uma situação extremamente grave”, com potencial para ampliar a crise de segurança pública do País, fortalecendo a “estrutura operacional” das organizações criminosas com “armas e munições, cujas origens são desconhecidas pelo Estado”.
O caso pode levar a uma ação de improbidade na Justiça Federal ou à abertura de um inquérito no Supremo Tribunal Federal. Caberá a estas instituições mostrar que as Forças Armadas – assim como a Polícia Federal – existem para servir ao Estado e não ao governo de turno, e que seus atos administrativos não precisam se adequar às diretrizes do presidente e seus correligionários, mas sim à Constituição.