Marcação aponta origem do projétil e pode ajudar na elucidação de crimes; munição da maior chacina de SP era do mesmo lote usado para matar Marielle Franco
Por Arthur Stabile (leia matéria completa publicada pelo jornal Ponte)
O Brasil possui apenas 22% de todas as munições que circulam no país com algum tipo de identificação para saber sua origem e quem a comprou. Este número pode diminuir caso um projeto de lei que tramita no Senado seja aprovado e retire a obrigatoriedade de marcação para as forças de segurança.
O PL 3.723/2019 tem como base um texto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) enviado à Câmara dos Deputados no ano passado e sofreu alterações do deputado Alexandre Leite (DEM-SP). Uma delas é justamente a tentativa de que as polícias e Forças Armadas não precisem usar balas com descrição do lote de origem.
De acordo com a lei nº 10.826 de 2003, que é o Estatuto do Desarmamento, quem integra forças de segurança, instituição ou pessoa física, só pode adquirir munições com identificação do lote e de quem o comprou na parte de trás dos projéteis.
Integram a lista de compras autorizadas mediante marcação as Forças Armadas, as polícias, as guardas municipais, os agentes prisionais e também empresas privadas de segurança. A proposta define a extinção exatamente do artigo 23 do Estatuto do Desarmamento, que define essa regra.
Segundo estudo do Instituto Sou da Paz, a soma de todas as munições compradas pelos grupos inclusos no artigo 23 representam 22% do total de munições existentes no país. O que significa que a cada 10 cápsulas de balas somente 2 têm informações sobre seu lote de origem.
A tentativa de diminuição é vista com alerta pela entidade, uma vez que a marcação é fundamental para elucidação de crimes, já que é uma pista importante de quem seria o atirador e se há suspeita de desvio de munição. “Seria, de fato, bastante negativo, 22% é muito pouco. Gostaríamos que fossem todas. É importante que se tenha, não que retroceda”, argumentou Natália Polacchi, coordenadora de projetos do Sou da Paz, à Ponte.
No caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, por exemplo, a munição era do mesmo lote da que foi usada na maior chacina da história de São Paulo, a Chacina de Osasco, que deixou 23 pessoas mortas, em 2015.
“Essa evidência de que na morte da Marielle se usou munição encontrada em chacina em São Paulo, permitiu chegar ao roubo aos Correios na Paraíba. Só nesse caso, vimos um desvio na Polícia Federal que afetou uma infinidade de crimes”, explicou.
Um ponto citado pela especialista é que a regra define a identificação do lote e cada produção deve ter, no máximo, 10 mil unidades de projéteis. No entanto, há casos com lotes de 1 ou 2 milhões.
Levantamento feito pela organização no ano passado identificou que, pela primeira vez, os atiradores praticamente igualaram a quantidade de munições compradas pelos órgão de segurança pública do país: 32.107.710 contra 32.247.467.
A ascensão é constante desde 2016, quando os atiradores eram responsáveis por 9.721.760 das munições em circulação no país. O crescimento em três anos é de 230%.
Natália alerta que a legislação atual já abre brecha para que munições sem identificação sejam desviadas pelo crime organizado devido à flexibilização de armas e munições aos CACs – como são chamados colecionadores, atiradores e caçadores.
“Pessoas de má-fé com registro de atirador podem comprar até 180 mil munições por ano. Uma única pessoa mal intencionada pode ter esse acesso e fazer o desvio”, exemplificou, citando que é praticamente impossível identificar essa pessoa pois suas munições não têm marcações já na atual lei.
Há também o risco de furto dessas munições ou armas, como aconteceu em Ibiúna, interior de São Paulo, no dia 23 de janeiro, quando uma quadrilha levou R$ 56 mil em armas e munições de um clube de tiro.
Em fevereiro do ano passado, situação semelhante aconteceu em um clube de tiro na Lapa, zona oeste de São Paulo, quando mais de 30 armas foram levadas durante a madrugada.
Outro dado do levantamento do Sou da Paz mostra que os atiradores adquiriram 143% munições a mais do que as Forças Armadas, que compraram 13.204.805 unidades em 2019. Na soma, os compradores privados superaram em três vezes o total de todas as forças públicas.
A Ponte solicitou entrevista com o deputado Alexandre Leite, mas seu assessor de imprensa explicou, por telefone, que o político optou por “não tocar mais no assunto, pois o projeto já está designado ao Senado”.
Além dele, a reportagem acionou o senador Marcos do Val (Podemos-ES), relator do caso na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, e recebeu de sua assessoria resposta de que ele não falará antes de “ouvir as entidades envolvidas e os partidos”.