Se o Estado cumprisse seu papel, a redução da maioridade penal nem seria discutida
Artigo de Carolina Souto, assistente de advocacy no Instituto Sou da Paz e Vanessa Alves, supervisora socioeducativa do Instituto Sou da Paz, publicado no JOTA. (Acesse o texto original)
A principal legislação brasileira de proteção à criança e ao adolescente, apontada como uma das mais avançadas do mundo, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) representa um marco civilizatório por concebê-los como sujeitos de direitos, compreendidos sob a doutrina da proteção integral. Não obstante, a luta pela defesa da lei e pela garantia de sua efetivação é constante e desafiadora. Se por um lado o ECA, fruto de mobilização de diversos atores nas décadas de 80 e 90, representou um marco para os direitos das crianças e adolescentes, por outro, representa, ao longo dos seus 30 anos, um instrumento de resistência. Isso significa dizer que ameaças à legislação e retrocessos são realidades objetivas.
Para o adolescente autor de ato infracional, concebido pelo ECA como penalmente inimputável, é garantida a aplicabilidade de uma medida socioeducativa, que prevê a responsabilização e a garantia de seus direitos. Em 2012, a Lei 12.594 instituiu o SINASE, que regulamenta o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Há, no entanto, tanto no debate político como público, uma séria discussão acerca do tratamento das instituições em relação ao adolescente em conflito com a lei. Assim, os esforços para reformar essas normativas ganham fôlego no Congresso Nacional.
O debate legislativo central do tema é o da redução da maioridade penal, que divide opiniões entre políticos, juristas e a população. A primeira Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que objetivava reduzir a maioridade penal é de 1993 Ou seja, com apenas três anos, o Estatuto já era objeto de retrocesso legislativo. Essa mesma PEC voltou com força em 2015, ano em que foi aprovada na Câmara dos Deputados, não sem uma enorme mobilização da sociedade civil contrária à medida. Em junho do ano passado, a mesma PEC retornou à pauta no Senado Federal e segue em tramitação.
Em outubro de 2017 foi apresentado relatório da Comissão Especial que analisou propostas de mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente. Na época, a Comissão analisou mais de 50 propostas legislativas, muitas dentre as quais ameaçavam as conquistas do ECA. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) foi um importante ator neste debate, inclusive participando de audiências públicas na Comissão, manifestando a rejeição das propostas que estavam sendo discutidas.
Enquanto pensamos no (a) adolescente em conflito com a lei como sujeito de direitos, que deve ser amparado (a) por uma rede que os garantam, há lideranças políticas e parlamentares eleitos (as) produzindo discursos e projetos de lei que vão no sentido contrário a esse entendimento. Hoje, no Congresso Nacional há, pelo menos, 29 propostas legislativas que representam verdadeiro retrocesso: são propostas que visam o aumento do tempo de internação, que retiram direitos dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e aquelas consideradas as mais graves que reduzem a maioridade penal.
Os discursos e justificativas presentes nesses tipos de propostas legislativas baseiam-se na argumentação de que, tornando a sanção aplicada aos adolescentes mais dura, a criminalidade é reduzida. O que parece escapar na narrativa destes grupos é justamente a observância aos princípios básicos estabelecidos no ECA e na própria Constituição Federal.
Medidas como essas violam todos os direitos resguardados nesses diplomas, sobretudo porque estamos falando de pessoas que estão em fase peculiar de desenvolvimento e são prioridade absoluta do Estado. Além disso, há uma vasta produção de pesquisas disponíveis que alertam para o fato de que as medidas que reduzem a maioridade penal não representam bons caminhos para prevenir que o adolescente cometa ato infracional, havendo evidências suficientes de que a adoção de medidas punitivistas e de endurecimento penal não implicam na diminuição dos índices de violência.
Em detrimento dessas medidas, propostas que implementem políticas públicas capazes de garantir o acesso de todas as crianças e adolescentes aos direitos fundamentais previsto pelo ECA, há 30 anos, devem ser impulsionadas. A efetividade destas políticas que articulem a saúde, a educação, o trabalho, a cultura, o lazer, esporte e a assistência social, sempre que necessário, assumem um papel preventivo no envolvimento dos adolescentes com o meio infracional. Se o Estado cumprisse seu papel, como previsto nos capítulos iniciais da lei, a necessidade de se aplicar medidas socioeducativas seria muito menor.
Precisamos, sociedade civil organizada e instituições, estar atentos e seguir firmes na irrestrita defesa daqueles (as) que, muitas vezes, passam a vida sendo “invisíveis” para o Estado, mas, ao cometerem um ato infracional, o conhecem na sua dimensão mais perversa: a punitivista. Num contexto de pandemia que vivemos, é ainda mais importante o exercício do controle social do sistema socioeducativo. Se a excepcionalidade da medida de internação já é princípio do ECA, em tempos de isolamento social essa medida deve ser ainda mais cumprida, além da garantia de toda a estrutura de proteção aos profissionais do sistema socioeducativo, aos adolescentes e suas famílias.
É também nosso papel denunciar o debate que vem sendo travado no Congresso Nacional, bem como cobrar dos (as) legisladores (as) propostas que fortaleçam e aprimorem o ECA e o SINASE, em detrimento daquelas que os enfraquecem. É extremamente preocupante que os nossos legisladores apresentem como resposta à infração juvenil o encarceramento precoce dessa população, por meio de propostas diametralmente opostas às normativas legais, já parcamente postas em prática.
Essas medidas atingem, especialmente, a juventude negra e periférica do país, alvo do racismo estrutural que está no bojo da nossa sociedade e instituições. Apostar em tais medidas significa ignorar os dados disponíveis de reincidência no sistema penitenciário, que evidenciam que é equivocado o investimento na superlotação dos presídios em detrimento do investimento no sistema socioeducativo – com taxas muito menores de reincidência; ou que crianças e jovens não são os principais causadores da violência, e sim as principais vítimas. Significa, sobretudo, declarar o atestado de falência do Estado enquanto garantidor de direitos de crianças e adolescentes.