Para o Instituto Sou da Paz, não se pode desprezar contexto socioeconômico e demográfico: a redução populacional de jovens nas faixas de idade mais vulneráveis à violência
Por Leila Souza Lima — De São Paulo
Embora o governo Jair Bolsonaro (PSL) venha defendendo reiteradamente que a redução nas taxas de homicídios no país se deve às recentes políticas federais de segurança pública, dados sobre violência até 2018 mostram tendência de retração sustentada em diferentes Estados desde 2014 – e de forma ininterrupta na Paraíba e em São Paulo, além de Distrito Federal. A análise é do Instituto Sou da Paz, que toma como base números reunidos pelo Monitor da Violência.
Em 2017, foi registrada diminuição dos homicídios em 16 das 27 unidades federativas. Das 24 em que houve redução em 2018, 14 já haviam apresentado índice menor em 2017 na comparação com 2016. Por esse prisma, o resultado de 2018 não é tão surpreendente quanto parece inicialmente, aponta a entidade.
Tampouco essa trajetória poderia estar relacionada a um ano só no poder, tempo suficiente apenas para proposição e aprovação de medidas, bem como manejo de recursos – o que pressupõe que se estabeleça tempo para avaliação segura dos impactos, argumenta Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Mas ela ressalva que, ainda que improvável por fatores ligados a prazos, a apropriação desse fenômeno é comum do ponto de vista político.
No dia 4, o ministro da Justiça, Sergio Moro, ironizou a posição dos especialistas que negam essa relação. “Crimes caíram em todo o país em percentuais sem precedentes históricos em 2019. Leio de alguns ‘especialistas’ em segurança pública que o governo federal não tem nada a ver com isso. Dos mesmos que compunham ou assessoravam os governos anteriores quando os crimes só cresciam”, escreveu Moro em sua conta no Twitter, após ter feito menção semelhante em meados de dezembro.
“Se quiserem atribuir a queda ao mago Merlin, não tem problema. Os criminosos, sem diálogos cabulosos, sabem por que os crimes caem. Trabalhamos para melhorar a vida das pessoas e o que importa é que os crimes continuem caindo”, publicou na sequência, ilustrando a ideia com imagem do personagem da animação dos estúdios Walt Disney.
Ao analisar os indicadores, Carolina contesta essa tese. “Há um dado já consolidado importante [da redução de homicídios], de 2018, que se reflete em 2019 em termos de Brasil. Mas para entendermos o que está por trás disso é preciso olhar os Estados; há uma variação muito grande entre eles”, ressalta a especialista, ao se referir às prováveis causas e aos números.
“Já quando observamos um conjunto de localidades – Distrito Federal, Paraíba e São Paulo -, percebemos que a queda desses indicadores já vinha ocorrendo”, afirma. “Há outro grupo em que as reduções não são consecutivas, mas por quatro anos viu o índice recuar. Fazem parte dele Goiás, Mato Grosso, Espírito Santo e Paraná.”
As razões apontadas pelo Instituto Sou da Paz para a retração nos homicídios divergem das propostas previstas no pacote anticrime do ministro Moro como fórmula para reduzir a incidência da violência – algumas delas centradas no endurecimento das políticas de segurança pública e no fortalecimento do uso da força policial. Políticas de gestão para resultados – como no Espírito Santo, em Goiás e no Distrito Federal -, de investimento na inteligência das polícias, como em Minas Gerais e São Paulo, ou de esclarecimento de homicídios, como na Paraíba, são exemplos na análise do instituto.
“Não são um milagre, uma bala de prata e têm limites, mas há evidências de que políticas estaduais nesse sentido podem dar contribuições positivas”, avalia Carolina. “É importante, porém, abrir os dados e ver quais Estados puxam essa retração há mais tempo; não é uma queda tão homogênea. Tem que ver o que pode ter acontecido para ajudar na redução das mortes violentas e até de outros crimes.”
Entre as novidades de 2018, estão Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, que, juntos, responderam por 31% da redução verificada no país em 2018. Já Pernambuco teve sua maior redução percentual entre 2018 e 2017 – uma queda de 23,2%. Contudo, essa foi sua única retração no período analisado, e 2017 registrou o pior índice, com 5.427 assassinatos.
O Espírito Santo vinha reduzindo o número de mortes violentas desde 2014, então o resultado de 2018 não é tão surpreendente. E só foi significativo, aponta a análise, porque a greve da polícia militar em 2017 impactou o número de homicídios, que cresceu no ano.
Embora ausente dos destaques do levantamento, Pernambuco, que entre 2007 e 2011 experimentou a implantação do Pacto pela Vida, é citado por Carolina. Ela faz menção também ao Rio do período entre 2009 e 2012, que registrou queda na violência com o Sistema Integrado de Metas (SIM) – política estadual paralela às UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que integrou as polícias, firmou metas e a obrigação de prestação de contas do trabalho policial.
“É difícil fazer afirmação categórica acerca dos resultados, porque nenhuma dessas políticas foi avaliada. Mas podemos olhar casos de sucesso como o Distrito Federal, que obteve êxito após implantar o Viva Brasília, nosso Pacto pela Vida, programa que criou indicadores, fez integração entre as polícias e incluía cobranças por parte da Secretaria de Segurança”, diz Carolina. “Na Paraíba mais recentemente, foi implantado o monitoramento do trabalho da polícia civil, com indicador de esclarecimento de homicídios. O que amarra é sempre inteligência, planejamento, uso de dados e informação, com os governos estaduais dando prioridade a essas políticas.”
A análise do Instituto Sou da Paz observa ainda que não se pode desprezar contexto socioeconômico e demográfico: a redução populacional de jovens nas faixas de idade mais vulneráveis à violência. Também lembra que o fortalecimento dos centros integrados de comando e controle, por ocasião de grandes eventos – como os Jogos Olímpicos -, pode ser mecanismo que ajuda a refrear o crime.
E, apesar de não haver informações oficiais, a entidade destaca que a ruptura, em 2017, da trégua entre facções criminosas – como PCC e CV – pode ter impulsionado conflitos sobretudo no Norte e Nordeste, incluindo o sistema prisional, como apontam analistas. Assim, a volta de “certo equilíbrio” pode explicar a redução de mortes em 2018 em alguns Estados. Para Carolina, a retração na violência deve ser festejada, mas ela faz ponderação que guarda relação com a influência desses movimentos sobre políticas adotadas. “É preciso cuidado com apropriações indevidas das causas das mudanças.”