Após um ano de mandato, é preciso reconhecer que a lógica do confronto segue pautando a visão do Governo federal na segurança pública
BRUNO LANGEANI| CAROLINA RICARDO| FELIPPE ANGELI
Leia o texto original publicado no El País Brasil
Entre as muitas críticas que se pode endereçar ao presidente Jair Bolsonaro, uma que seria injusta é a acusação de incoerência. Em seus sete mandatos como deputado federal, desde 1991, a obstinação em banalizar o uso de armas de fogo e a apologia que sempre promoveu dos anos de chumbo do regime militar constituem os pilares centrais de sua atividade política. Em vinte anos de trabalho pela melhoria da segurança pública brasileira e por uma política responsável de controle de armas e munições, o Instituto Sou da Paz adota entre seus valores inegociáveis a defesa da democracia e a proteção incondicional da vida humana. Pautados nisso, temos mobilizado a sociedade e seus representantes eleitos na denúncia às sucessivas tentativas do Governo Federal de ampliar por decreto o acesso a armas, inclusive aquelas de alto potencial ofensivo, como armas semiautomáticas, sem o devido debate legislativo.
Esta mobilização, apoiada por setores importantes da sociedade como policiais, ambientalistas, defensores de direitos da população negra, mulheres, LGBTT, entre outros, obrigou o Governo a recuar muitas vezes. Após um ano de mandato, é preciso reconhecer que a lógica do confronto segue pautando a visão do Governo federal na segurança pública. Ao invés de prevenção à violência, armas. No lugar de alternativas pacíficas de resolução de conflitos, as Forças Armadas. Em contraposição ao devido processo legal, um discurso que legitima mortes violentas em confronto, atingindo quase sempre jovens, negros e periféricos. A obsessão pelo “excludente de ilicitude” é a nova aposta do Palácio do Planalto para acrescentar mais truculência a um já insuportavelmente violento Brasil.
Ignorando os recordes de letalidade policial, vimos o Governo apresentar à Câmara dos Deputados o PL nº 6125/2019, com o objetivo de flexibilizar a estrita observância ao dever de proteção da vida para ampliar as hipóteses de excludente de ilicitude, deixando de punir o agente público por excessos cometidos. Obviamente, não se trata aqui de denunciar o bom policial ou soldado que arrisca sua vida na defesa da população, no estrito cumprimento de seu dever legal e segundo os melhores protocolos do uso da força. Mas preocupam as cada vez mais frequentes e irresponsáveis menções ao AI-5, símbolo do Estado de exceção no período mais duro da ditadura militar, como instrumento voltado à defesa nacional frente à possibilidade do legítimo exercício dos direitos de reunião e manifestação por cidadãos descontentes. Também houve o anúncio da intenção em direcionar as Forças Armadas para ações de reintegração de posse inseridas no contexto de conflitos agrários, além do avanço difuso de outros projetos que também tratam da ampliação do excludente de ilicitude em comissões parlamentares do Congresso Nacional.
Em respeito à história, não temos o direito de minimizar qualquer arroubo autoritário expresso pelo mais alto líder da nação. Alusões irresponsáveis ao AI-5 por representantes do Governo são inadmissíveis. Mais do que nunca é preciso reafirmar trechos daquele discurso de 5 de outubro de 1988, quando Ulysses Guimarães cravou de forma definitiva que a “Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.”
Bruno Langeani é gerente do Instituto Sou da Paz; Carolina Ricardo é diretora-executiva do Instituto Sou da Paz; e Felippe Angeli, gerente do Instituto Sou da Paz