Se a missão das polícias é preservar vidas, momento de parar deve ser claro para que novos casos como o de Paraisópolis não se repitam
CAROLINA RICARDO, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz
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As mortes em Paraisópolis são inaceitáveis. Sabemos que a atuação policial naquele contexto não é simples, assim como não é em qualquer outra festa no espaço público. Mas sabemos também que a atuação policial ali poderia ter sido bastante diferente, como em geral é nas festas e eventos públicos em regiões mais centrais da cidade, por exemplo. Por isso, é nosso dever não deixar que estas mortes sejam esquecidas ou não tenham consequência para a instituição policial. Precisamos, portanto, discutir o uso da força para evitar casos semelhantes.
Mas o que Paraisópolis e a alta na letalidade policial no estado de São Paulo tem em comum? Ambos fenômenos são manifestação direta do uso da força policial.
No Estado Democrático de Direito, polícia só é polícia porque é autorizada a usar a força. Na definição clássica de David Bayley, em uma sociedade democrática “polícia pode ser definida como um conjunto de pessoas que recebem autorização de um determinado grupo de cidadãos para regular as relações interpessoais dentro desse mesmo grupo por meio do uso da força física”.
A autorização dada por uma sociedade para que a polícia use a força é o que legitima que essa mesma sociedade possa discutir ativamente sobre a forma pela qual a polícia usa a força. O uso da força é constituinte do fazer policial e justamente por isso é que deve se submeter ao controle social.
A letalidade é o grau máximo de força que a polícia pode usar. Naturalmente, o uso letal da força por parte da polícia já deve ser alvo de discussão pública, mas quando este fenômeno apresenta tendência de crescimento, como ocorre no estado de São Paulo, essa abertura à discussão pública, deve ser ainda maior. Uso letal da força é questão essencial da política de segurança, sobretudo num estado cujos indicadores, como homicídios e alguns crimes patrimoniais, vem caindo.
Estudos realizados pelo Sou da Paz1 já mostraram que os casos de mortes em confronto acontecem, em geral, precedidos por um caso de roubo. Qual a política de uso da força nesses casos? Até onde a polícia deve ir aumentando o nível de força para prender alguém em flagrante ou numa perseguição que acaba colocando mais pessoas em risco do que se os criminosos fugissem para serem capturados depois? Qual a hora de parar?
Se a missão policial é preservar vidas, o momento de parar deve ser claro: quando há uma vida em risco, seja a do policial, da pessoa suspeita ou de terceiros.
Essa mesma pergunta vale para o caso de Paraisópolis. Se houve uma perseguição à motociclistas que atiraram, qual a orientação institucional? Até que momento a perseguição deveria seguir com o escalonamento da força? Qual o momento de parar? A entrada num baile funk com 5 mil pessoas e o risco de uma catástrofe coletiva não deveria ser um freio institucional, parte da política de uso da força? Quem era o responsável pela operação e como se organizou a cadeia de comando que definiu a operação? Qual a apuração feita posteriormente sobre o caso e quais as medidas para o caso concreto e para que casos futuros como esse não se repitam?
Este caso, coloca ainda uma outra questão que é a seletividade da atuação policial.
Se a polícia dispõe de técnicas mínimas para situações como esta, por que elas não foram usadas? Por que há mais força e violência empregadas nessa comunidade e nessa situação do que em outras semelhantes, mas em zonas mais centrais da cidade? Este também é um aspecto essencial de uma política de uso da força, que deve ser igualitária e não seletiva e nem discriminatória.
Vale destacar, ainda, que o tratamento a ser dispensado a festas ou atividades coletivas, seja um baile funk, uma micareta ou um protesto, deve envolver, antes de mais nada, diferentes atores públicos que não exclusivamente a polícia. No caso de protestos, Ministério Público e Defensoria; no caso de baile funk, a prefeitura regional, o Conselho Tutelar e a Secretaria de Cultura que podem combinar regras e apoio para o evento.
Em relação à ação policial, além da responsabilização individual dos policiais presentes em Paraisópolis, é urgente que a instituição policial como um todo se responsabilize pelo fato, sobretudo, para fazer justiça às vítimas e para evitar casos futuros. É também preciso chamar a atenção para a responsabilidade do governador do estado, comandante máximo das polícias, de quem se exige muito mais do que declarações de ocasião definidas ao sabor do que aponta a opinião pública. E, acima de tudo, aceitarmos que a Polícia Militar do Estado de São Paulo precisa ter uma política de uso da força formalizada, transparente e incorporada efetivamente por toda a tropa.
E o que significa ter uma política de uso da força formalizada e transparente? Em primeiro lugar, uma política dessa natureza servirá para evitar casos de disparos desnecessários em perseguições, de pessoas mortas ou gravemente feridas quando deveriam ser apenas imobilizadas, de disparos realizados contra pessoas desarmadas ou rendidas e de excessos na utilização de armas não-letais em manifestações públicas.
Ainda que a PMESP tenha protocolos operacionais padrões para diferentes situações de uso de uso da força, eles focam mais na técnica a empregar do que numa discussão qualificada sobre se e como a força deve ser, efetivamente, empregada. A formação e treinamento dos policiais deve ser recorrente e focada na discussão das oportunidades para que a força em seus diferentes níveis seja utilizada e, sobretudo, o comando e supervisão sobre as atividades principais de uso da força, deve ser permanente. Deve haver avaliação técnica após cada evento em que a força possa ter sido usada de maneira incorreta ou excessiva. Por fim, a preservação da vida de todas as pessoas, mais do que o combate ao crime, a preservação da ordem e a aplicação da lei, deve ser a missão número um do trabalho policial.
O Sou da Paz vem chamando há tempos a atenção para a necessidade de que o uso da força pela polícia seja central no debate sobre segurança pública no Estado de São Paulo. É preciso que a polícia se abra para que a sociedade faça parte dessa discussão e torne, no mínimo, seus resultados, públicos. Em 2014 publicamos um posicionamento2 sobre uso da força que oferece uma série de recomendações para que se avance nessa direção.
Para além da responsabilização que está sendo apurada e já está sob acompanhamento de diversos setores é também hora de governo, polícia e sociedade fazerem um pacto para a construção dessa política de uso da força. É isso que devemos cobrar das forças de segurança para que uma nova Paraisópolis não aconteça novamente.
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1 https://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/analises-e-estudos/analises-e-estatisticas/letalidade-policial/?show=documentos#documentos-4
2 https://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/analises-e-estudos/analises-e-estatisticas/letalidade-policial/?show=documentos#documentos-1
CAROLINA RICARDO – diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.