Enquanto o fuzil for a única resposta do governo federal para os problemas de segurança pública, que vão muito além do Rio de Janeiro, dificilmente o Brasil verá solução para o mal do crime e da violência
A Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram nesta semana o decreto de intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, assinado pelo presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro “para pôr termo a um grave comprometimento da ordem pública no Estado”. Há poucos dias, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, afirmou que “estamos vivendo uma guerra assimétrica” e o ministro da Defesa, Raul Jungman, anunciou que pretende solicitar à Justiça estadual do Rio mandado de busca e apreensão no qual não serão especificados os destinatários das prisões e as demais medidas cautelares. Já o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, expressou necessidade de “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade” no futuro. Sem contar, mais uma vez, o anúncio do “pacote legislativo sobre segurança pública”, anunciado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, como solução milagrosa para os problemas do país, sem clareza de diagnóstico e no afogadilho do momento.
À luz deste contexto e considerando a triste realidade da Segurança Pública do Rio de Janeiro, o Instituto Sou da Paz questiona a decisão do governo federal, tanto em seu fundamento como em sua eficácia. Alerta, ainda, para os riscos às instituições e ao estado democrático de direito e, dada a aprovação do decreto de intervenção, aponta caminhos para mitigar potenciais efeitos colaterais da medida.
É inquestionável a gravidade do quadro de insegurança fluminense: o crescimento de tiroteios nas comunidades, notícias de arrastões e latrocínios nas vias públicas e verdadeiro domínio territorial de determinadas localidades colocam a população na condição de refém do medo e do acaso. Contudo, em que pese o clamor popular por uma política pública de segurança efetiva, a intervenção é fundada em prognósticos comprovadamente ineficientes ao longo das últimas décadas e pode produzir um efeito devastador sobre avanços duramente conquistados no Brasil para a redução da violência desde a redemocratização.
Primeiro porque o Exército, ainda que tenha participado em missões de pacificação, carece do treinamento e equipamentos próprios para a luta contra o crime organizado nas grandes cidades, como sistemas integrados de inteligência e investigação policial. Não à toa, outras ações militares no Rio de Janeiro como a Eco-92, a Jornada Mundial da Juventude, a Rio+20, a Olimpíada, a Copa do Mundo, e as operações de Garantia da Lei e da Ordem do último ano no Rio de Janeiro, tiveram poucos resultados na segurança pública do Estado para além do tempo de presença física.
Cabe assinalar, em segundo lugar, os riscos de atribuir ao Exército funções eminentemente policiais que expõem os seus membros à mesma corrupção que enfraquece a corporação fluminense. O contato cotidiano com o narcotráfico deixa o Exército mais vulnerável aos interesses do crime organizado, como dá testemunho a experiência do México. O próprio comandante-geral do Exército, o general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, caracterizou o uso de militares em atividades de segurança pública em junho de 2017 como “desgastante, perigoso e inócuo” e criticou em dezembro do mesmo ano o uso “constante” da tropa em “intervenções” nos estados.
Também preocupa a falta de transparência sobre os critérios que justificam uma intervenção de natureza e amplitude inéditos. O Rio necessita vitalmente de uma liderança política que priorize a preservação de vidas e o combate ao crime, mas o estado já viveu momentos mais violentos e não há sinal de paralisação das forças de segurança, apesar das deficiências agravadas nos últimos meses pela crise financeira do estado. Nesse sentido, há outros estados com taxas criminais mais altas que o Rio de Janeiro e que clamam, há muito, por apoio federal na seara da segurança pública. Coerência à parte, o caráter errático das recentes medidas do governo federal no Rio revela a ausência de consistência estratégica e tática no campo da segurança pública.
Por fim, suscita receio o possível aumento de violações aos direitos individuais garantidos pela Constituição Federal de 1988 nas comunidades cariocas, dada a falta de clareza sobre os mandatos dos atores estaduais e federais na intervenção, aliada às recentes declarações dos ministros da Justiça e da Defesa. A flexibilização de direitos fundamentais à luz das particularidades do combate ao crime organizado não só ignora a importância de ganhar os “corações e mentes” da população, essencial para contribuir com a coleta de inteligência no território, mas contraria princípios e normas nacionais e internacionais sobre os limites do uso da força por agentes do Estado.
Uma vez realidade, para garantir que a intervenção federal no Rio de Janeiro seja minimamente republicana, transparente e efetiva para a redução da violência, o Instituto Sou da Paz recomenda:
1. Esclarecer e tornar públicos os critérios técnicos em que se baseou o diagnóstico utilizado para justificar a intervenção federal;
2. Publicar orientações destinadas às polícias e ao Exército voltadas principalmente para o uso da força letal e à garantia de direitos fundamentais no âmbito da intervenção;
3. Detalhar os mandatos das Forças Armadas e outros atores federais e estaduais no âmbito da intervenção, bem como da mobilização dos recursos operacionais, logísticos e financeiros a serem empregados, buscando envolver ao máximo as forças de segurança estaduais, inclusive no que for necessário para auxiliar em sua reestruturação, como forma de garantir um legado estrutural para o Rio de Janeiro;
4. Apresentar um planejamento da intervenção focado em objetivos no curto, médio e longo prazo, incluindo indicadores claros para avaliação da efetividade e eficiência das ações;
5. Criar mecanismos permanentes de prestação de contas sobre as ações realizadas e os resultados alcançados, tornando-os públicos e possibilitando o monitoramento por parte de toda a sociedade;
6. Apresentar um plano que priorize o controle da corrupção dentro das polícias e em outras esferas do estado fluminense e a redução da letalidade nas ações policiais, tanto de civis quanto dos policiais;
7. Fortalecer iniciativas para combater o tráfico de armas e munição, em especial com uso de rastreamento sistemático do arsenal apreendido.
É cedo, decerto, para a cobrança de resultados da intervenção decretada pelo presidente Temer. Mas se há a algo a aprender com a violência no Rio de Janeiro nas últimas décadas é que a lógica do confronto apartado da inteligência policial só amplia o risco para quem está na linha de tiro – sejam policiais, soldados ou, principalmente, moradores das comunidades.
É preciso destacar, ainda, a recorrente opção do governo federal pelas Forças Armadas em detrimento das forças policiais constituídas nos estados que sofreram intervenção ou operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Para além do desvio de função e deficiências naturais de uma força de guerra para operações no seio de grandes cidades, despreza-se o esforço na construção democrática e republicana de um campo civil na segurança pública. É ignorado, ou relegado à segunda classe, o trabalho de policiais, gestores e especialistas dedicados à promoção da paz social e da justiça desde a redemocratização.
Apesar de o governo federal seguir insistindo na estratégia do uso das Forças Armadas para combater o crime, acreditamos que a forma mais eficaz de combater “a metástase” da violência continua sendo a promoção da boa gestão, robusta e prioritária, de políticas públicas de segurança e do sistema de justiça criminal. Enquanto o fuzil for a única resposta do governo federal para os problemas de segurança pública, que vão muito além do Rio de Janeiro, dificilmente o Brasil verá solução para o mal do crime e da violência.