Metade dos casos de ocorrências de tráfico de maconha equivale a até 2 bombons, revela Instituto Sou da Paz
O Instituto Sou da Paz fez um levantamento para subsidiar o debate sobre a atuação das instituições do Sistema de Justiça, sobretudo as polícias, em ocorrências com drogas e ajudem com isto a buscar o uso mais estratégico dos recursos disponíveis para a segurança pública.
O objetivo foi a análise da dinâmica das apreensões de drogas no Estado de São Paulo sob a ótica da atuação das agências policiais considerando não apenas a quantidade de eventos (ocorrências), mas também a massa de drogas envolvida e quantidade de pessoas presas/apreendidas.
O Estado de São Paulo, o mais populoso do país com 22% da população brasileira, é o que tem o maior número de ocorrências relacionadas a drogas no país (mais de ¼ do total), segundo dados do Anuário estatístico do FBSP. Essa Unidade da Federação responde também por um volume considerável das apreensões (mais de 160 toneladas em 2016).
Tanto no estado quanto no resto do país parte significativa da energia e recursos do Sistema de Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil é utilizado com ocorrências relacionadas a drogas ilícitas. São aproximadamente 277 mil ocorrências por ano, o que demanda diferentes tipos de encaminhamentos e procedimentos de todas as instituições que compõe o Sistema, desde as polícias, passando pelo Judiciário e chegando até o Sistema Prisional. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (2016) nos mostram que os casos de tráfico de drogas respondem por 28% dos presos. A questão impacta com mais força em determinadas parcelas da população. Entre as mulheres, por exemplo, o tráfico de drogas é o principal crime das que cumprem penas presas (62%). Entre os adolescentes, o tráfico de drogas é a segunda causa de privação de liberdade (24% dos atos infracionais).
A escolha de política de drogas adotada pelo Estado e implementada em seus diferentes níveis impacta em custos nas políticas de saúde, segurança, justiça e sistema prisional. Para o ano de 2014, TEIXEIRA (2016) estimou que os gastos nacionais de repressão policial seriam de aproximadamente 406 milhões com mais 3,3 bilhões gastos no sistema prisional.
Em relação à posse para uso, é importante lembrar que em 2006 o Brasil realizou uma alteração na sua legislação de drogas. Uma das medidas mais destacadas foi a despenalização de drogas para uso próprio. Assim, portar droga para uso pessoal ou usar drogas deixaram de ser crimes passíveis de prisão, mas estas ações e comportamentos não deixaram de ser crimes. Dessa forma, a lei continua prevendo que as instituições policiais encaminhem as pessoas que estejam portando droga para consumo para delegacia de polícia, e que um conjunto de providências burocráticas ocorram, consumindo recursos e tempo, vinculando assim o usuário ao sistema de Justiça Criminal.
No bojo das mudanças legislativas realizadas em 2006 o crime de tráfico de drogas sofreu um endurecimento das penas e regras de progressão como detalhado por Carlos (2015):
As penas para o tráfico de drogas, por outro lado, foram substancialmente aumentadas pela Nova Lei de Drogas, com penas que variam de 5 a 20 anos (ou mais, se o crime incluir a participação em facções criminosas ou envolver tráfico interestadual ou internacional), além da maior severidade nos regimes de cumprimento de pena, decorrente da equiparação do tráfico de drogas aos crimes hediondos.
O principal efeito visível na política foi o aumento de pessoas encarceradas pelo crime de tráfico de drogas. De 47 mil em 2006 para 176.691 em junho de 2016, segundo Departamento Penitenciário Nacional (2016, p.42). Havendo na literatura quem argumente que isto se deve ao fato de mais usuários estarem sendo enquadrados como traficantes (por falta de critérios objetivos de diferenciação entre uma categoria e outra) e quem argumente que o fenômeno está mais relacionado ao aumento de fato do mercado ilegal de drogas.
Atualmente, está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 635.659, proposto pela Defensoria Pública de São Paulo em 2011, com vistas a declarar inconstitucional o artigo 28 (posse para uso) da lei de drogas, o que na prática tiraria a posse de drogas com finalidade de uso da esfera criminal.
A rediscussão da política de drogas no Brasil e no mundo muitas vezes se concentra na regulação do mercado de maconha. Por conta disso optamos por realizar aqui uma análise adicional para entender a participação de ocorrências envolvendo drogas, em que o único tipo encontrado era a maconha. Na extração de uma amostra de ocorrências por tipos de drogas, as que envolviam exclusivamente maconha representam 51,5% do universo.
Em outras palavras, um cenário em que a maconha deixe de ser ilegal pode derrubar pela metade as ocorrências de tráfico e posse para uso que entram no Sistema de Segurança e Justiça Criminal.
>> O que identificamos?
A pesquisa permite fazer uma análise crítica mais aprofundada para além da avaliação sobre o aumento das ocorrências e aumento da massa de drogas que vem sendo apreendidas no Estado, pois considerou outros dados, como quem apresenta essas ocorrências no distrito policial e dinâmicas específicas dos tipos de drogas considerados.
Ocorrências
O volume de ocorrências envolvendo posse de drogas para uso pessoal cresceu significativamente de pouco mais de 20 mil ocorrências por ano em 2005 para mais de 32 mil em 2016, o maior valor da série. Em 2017 há uma queda para 26,9 mil ocorrências.
A participação das ocorrências de posse, frente ao total de ocorrências de drogas segue uma tendência de queda e atingiu o menor patamar em 2017.
Ocorrências de posse
A ocorrência de posse de drogas para uso implica na condução do usuário ao Distrito Policial com uma viatura da Policia Militar que fica algumas horas fora do policiamento preventivo, e demandará agentes, escrivães e delegados trabalhando num Termo Circunstanciado sem falar nas tratativas posteriores dentro da Justiça Criminal.
Foram mais de 77 mil ocorrências, nos últimos três anos de análise (janeiro de 2015 a setembro de 2017), e ao olharmos a quantidade de drogas envolvida nestas ações fica ainda mais evidente a falta de racionalidade e lógica neste tipo de atuação.
É preocupante que ocorrências envolvendo usuários ocupem por volta de 40% das ocorrências totais de droga pela polícia. São milhares de ocorrências anuais (ainda mais expressivas no interior) que demandam energia e recursos do sistema de segurança e justiça, envolvem um grande número de pessoas para retirar de circulação algo em torno de 3% a 5% da massa de droga (conforme gráficos abaixo).
Ocorrências de tráfico
Com relação às ocorrências de tráfico de drogas o levantamento revela primeiramente uma extrema desproporcionalidade entre as ações. De um lado milhares [1] de ocorrências com um volume quase desprezível de drogas apreendida, de outro, algumas poucas apreensões de volume expressivo. O caso mais emblemático é o da maconha, onde 1% das ocorrências respondem por 76% do volume da droga apreendida no Estado no período analisado.
Na outra ponta, estamos falando de milhares [2] de pessoas pegas com volumes muito baixos de drogas num crime cuja pena mínima é em regra de reclusão de 5 anos, e cujos acusados costumam aguardar a sentença presos.
Em São Paulo, a quantidade destes crimes tem crescido de forma praticamente contínua. Em 13 anos o número de ocorrências de tráfico de drogas cresceu mais de 200% [3].
Aumentar o volume de ocorrências de tráfico com medianas de drogas tão baixas podem não só trazer pouco impacto na segurança, mas até serem contraproducentes ao tirar recursos e energias das forças policiais do combate a outros tipos de crimes (roubos e homicídios, por exemplo). Abaixo as medianas de drogas por tipo nas ocorrências de tráfico no Estado.
Para tentar entender este universo de grandes apreensões fizemos um filtro das 100 maiores ocorrências em quantidade apreendida por tipo de droga no Estado de janeiro de 2015 a setembro de 2017.
É possível verificar na tabela abaixo que estas apreensões representam entre 0,1% a 0,2% do total de ocorrências, e ainda assim, em alguns casos como o da maconha representam metade de toda a quantidade apreendida. Para cocaína representam 23% da massa apreendida e no crack 42%.
Um outro fator a ser considerado é que, pela leitura das notícias vinculadas aos grandes casos, é importante destacar que no universo das Top 100 ocorrências é mais frequente o uso de inteligência (denúncia anônima, investigação em curso) deixando claro a importância de fortalecimento de estratégias. Que para além do aumento na eficiência, também são ações em que há pouca violência associada (troca de tiros, pessoas feriadas), algo que contribui para proteção dos policiais e redução da vitimização de suspeitos e de outras pessoas que se encontravam próximas.
>> Quais foram as conclusões?
O levantamento apresenta um crescimento expressivo tanto no número de ocorrências de drogas registrado no estado de São Paulo, como também na quantidade de droga apreendida (com exceção do crack). Temos uma média de 63 mil ocorrências por ano. E no último ano registramos 80 mil casos.
Os casos de posse de droga para uso pessoal também cresceram de 2005 para cá, mas tem diminuído a sua participação frente ao total de ocorrências, o que é positivo. Ainda assim precisamos questionar se faz sentido que 40% das ocorrências envolvendo drogas ainda estejam focadas em usuários, cuja política pública pertence ao campo da saúde pública e assistência social e não ao de segurança pública.
Com o Supremo Tribunal Federal na iminência de concluir seu julgamento sobre o caso da criminalização de drogas (o Recurso Extraordinário 635.659[4]) para uso pessoal seria salutar que este dado fosse também produzido em outros Estados e discutido de modo racional com a sociedade e atores do setor público.
Com relação às ocorrências de tráfico de drogas a pesquisa revela uma extrema desproporcionalidade entre as ações.
Esta publicação visa contribuir com o debate sobre as prioridades da política de segurança. Sabendo que estas ocorrências implicam em tempo de registro na delegacia (o que em regra significam viaturas fora da rua por horas), produção de laudos, horas de processamento de provas nas delegacias e tribunais. Precisamos refletir sobre onde deveria estar o foco da política de segurança.
Quais os papéis esperados da Polícia Civil em suas delegacias territoriais e na especializada (DENARC)? Como analisamos esta responsabilidade frente aos resultados apresentados?
Na Polícia Militar, ainda que salte aos olhos a participação em grandes apreensões, com um destaque especial para Polícia Rodoviária, sobretudo no interior, precisamos entender os limites desta atuação se o resultado esperado é o enfraquecimento do crime organizado, já que muitas vezes o único preso é o motorista que realiza o transporte, claramente um intermediário com pouca relevância na cadeia do crime.
Por fim, vale destacar que a questão do crack que gera grande espaço na imprensa e muito calor nos debates públicos tem volume de apreensões muito baixo, em comparação aos outros tipos analisados. Além disso esta droga parece não estar no foco de prioridades da Polícia Civil e delegacia especializada. Os resultados podem tanto apontar que talvez o mercado não seja tão grande quanto se estima, quanto a polícia não tem se dedicado à apreensão deste tipo de droga.
[1] Em 2017 segundo a SSP de SP 48.807 pessoas foram presas em flagrante e por mandado pelo crime de tráfico de drogas no Estado de São Paulo. [2] Em 2017 segundo a SSP de SP 48.807 pessoas foram presas em flagrante e por mandado pelo crime de tráfico de drogas no Estado de São Paulo. [3] Em 2006 foram 16.166 ocorrências e em 2017 segundo dados da SSP foram 49.346. [4] O acompanhamento deste Recurso Extraordinário pode ser feito a partir do link: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeticao.asp?incidente=4034145