Temos um quadro abastecido por discursos populistas, retroalimentados pelo medo legítimo da população, e que dão lastro para que políticas de segurança ineficientes e mais violentas sejam colocadas em prática, num círculo vicioso que alimenta a segurança pública no Brasil
Artigo de Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil (clique para acessar texto original)
Quando pensamos nos discursos e nas políticas de segurança pública adotados no Brasil, quais atores e políticas vêm à cabeça?
Listo aqui o que, muito provavelmente, habita nosso imaginário ao buscar responder essa pergunta. Operações policiais que geram dezenas de mortes nas favelas cariocas encabeçadas pelo governador Cláudio Castro (PL). Ou, então, o duro discurso do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), se opondo ao uso de câmeras nas fardas dos policiais e afirmando que naquele estado bandido não se cria. Também vem à cabeça o governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos) mandando as organizações de direitos humanos irem para a ONU ou para o “raio que o parta”, quando houve o intenso debate sobre letalidade policial nas operações policiais chamadas de Escudo e Verão na Baixada Santista, no litoral de São Paulo.
Não é de hoje que a agenda da segurança pública é pautada por discursos e práticas que propõem a aplicação da lei penal como a única resposta para o problema da violência e da criminalidade. Fosse apenas essa exclusividade do foco no crime depois que ele acontece, o problema não seria tão grande. Ocorre que, acompanhando essa perspectiva exclusivamente repressiva, vem um combo de medidas sem lastro em evidências e sem resultados práticos para além de mais violência.
Como exemplo de medidas que compõem esse combo, é possível mencionar a violência policial. Segundo os dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, foram mortas 6.393 pessoas pelas polícias no país, sendo que de cada 5 pessoas mortas, 4 eram negras. O Anuário também mostrou que na década 2013-2023 houve um aumento de 190% na quantidade de pessoas mortas pelas polícias. Segundo dados do relatório Grande Rio sob Disputa: Mapeamento dos confrontos por territórios, do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, entre 2017 e 2022, de todos os confrontos armados registrados da região da Grande Rio, em 49% houve participação policial, indicando um alto padrão de violência nas ações policiais.
Além dos resultados concretos nas políticas de segurança, esse mesmo discurso de enfrentamento ao crime a qualquer custo vem sendo mobilizado ano após ano no Brasil, capitaneado por políticos de direita, e não raras vezes, também por políticos de esquerda que, num vazio de repertório, acabam reproduzindo esse mais do mesmo na segurança pública que alimenta e é alimentado pelo crescente medo da população. A análise realizada pelo Instituto Sou da Paz sobre o perfil das candidaturas policiais nas eleições de 2024 mostra bem essa mobilização do discurso linha dura pelos candidatos. Ao analisar esse mesmo perfil nas eleições de 2020, o Sou da Paz cunhou a expressão “policialismo” para caracterizar essa crescente politização das forças de segurança, materializada na consolidação da participação eleitoral de políticos policiais, na crescente presença desses perfis nas redes sociais, além do uso político das instituições policiais em graves situações de conflitos de interesses. Em 2024 houve cerca de 6600 candidatos oriundos de forças de segurança e a predominância de filiações partidárias à direita se manteve, sendo o Partido Liberal (PL) o que registrou o maior número de candidatos.
Há exemplos marcantes nessas candidaturas mostrando como o discurso linha dura e a violência policial são valorizados. O candidato à prefeitura de Manaus, Capitão Alberto Neto (PL), por exemplo, afirmou em um ato público: “se vagabundo trocar tiro com a guarda municipal, vai para o cemitério”. A campanha do policial federal Flavio Moreno (PP), candidato a vereador em Maceió, seguiu o mesmo tom: “segurança para a população e vagabundo no chão”. Já o delegado Éder Mauro (PL), deputado federal e candidato à prefeitura de Belém, frequentemente ressaltava seu orgulho de já “ter matado muita gente” ao longo de sua carreira policial. São discursos que não apenas incentivam o uso excessivo da força policial, como também reforçam a retórica do confronto e a normalização da extrema violência nas ações de segurança pública.
Temos, portanto, um quadro abastecido por discursos populistas, retroalimentados pelo medo legítimo da população, e que dão lastro para que políticas de segurança ineficientes e mais violentas sejam implementadas num ciclo vicioso que alimenta a segurança pública no Brasil.
Como chegamos até aqui? Há muitas explicações. A partir da abertura democrática e com a Constituinte que culminou na Constituição Federal de 1988, praticamente nada avançou em relação a um novo desenho para a segurança pública, particularmente em relação às instituições policiais. A lógica meramente repressiva oriunda da atuação policial predominante durante os anos de chumbo se manteve. Não se quer afirmar que as instituições policiais não passaram por transformações, com processos incrementais de profissionalização e alguns avanços, mas, sim, que essas transformações não foram suficientes para inverter a lógica de atuação na segurança pública.
Concretamente, o artigo 144 da Constituição estabeleceu que a segurança é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos e elencou as instituições policiais responsáveis por provê-la sem avançar na definição de um modelo federativo com responsabilidades compartilhadas entre os entes federados, e sobretudo sem enunciar que a vida deveria ser o bem mais valioso a ser protegido, assim como as liberdades e os direitos de todas as pessoas, sem distinção. Restou-nos uma segurança pública cuja responsabilidade primordial é a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Além da ausência de uma reforma estrutural no campo da segurança e das transformações meramente incrementais, insuficientes para mudar as práticas vigentes, é preciso dizer também que o campo progressista pouco assumiu a segurança como uma agenda prioritária. Desde o clássico bordão “rota na rua” de Paulo Maluf, até o atual discurso de Caiado citado acima, a pauta é tomada pela direita. Mesmo o campo progressista acaba reproduzindo a dimensão meramente repressiva da segurança pública, cujo exemplo mais clássico é o estado da Bahia, governado há anos pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e com altíssimas taxas de violência, incluindo a policial.
O campo progressista não conseguiu, historicamente, discutir e adotar políticas concretas para aplicar da melhor forma a dimensão repressiva da segurança pública para lidar com o crime, especialmente as punições e a atuação das polícias. Pouco se fala da importância de se fortalecer a investigação criminal; investir nas polícias civis; reforçar a integração entre polícias, Ministério Público e Poder Judiciário para reforçar o correto processamento de crimes; do trabalho coordenado entre polícia militar e civil com base em dados e inteligência; e da importância do estado retomar o controle de sobre o sistema prisional, por exemplo. Esse pouco avanço estrutural da segurança pública acabou deixando como legado um vazio de soluções que foi ocupado pela direita populista, que, dialogando com o medo legítimo vivido por grande parte da população, encontrou aberta uma grande janela de oportunidade para oferecer discursos e práticas ainda mais autoritários — e que começam a colocar em risco a própria democracia brasileira.
Ainda que o país esteja vivendo a redução de alguns importantes indicadores criminais, como por exemplo, diminuição de 24,6% dos homicídios entre 2013 e 2023, conforme indicado pela edição mais recente do Atlas da Violência, a sensação de insegurança é crescente. Segundo pesquisa Datafolha publicada em 2025, 58% da população brasileira avalia que a criminalidade aumentou em sua cidade nos últimos 12 meses. A violência se destaca entre as principais preocupações dos brasileiros em 2025, segundo pesquisa da Quest. Esse cenário indica que a segurança pública será uma dos grandes temas das eleições do próximo ano.
As eleições de 2024, conforme mostramos acima, já foram fortemente marcadas pela agenda da segurança pública. Novos debates têm sido propostos por prefeitos eleitos em importantes cidades para dar uma resposta à sensação de insegurança da população, como tem feito o prefeito Ricardo Nunes (MDB), da cidade de São Paulo, que buscou aprovar na Câmara Municipal um projeto de lei para chamar a Guarda Civil Metropolitana de Polícia Municipal, sem que essa mudança fosse acompanhada da profissionalização da guarda, com melhoria do plano de carreira, fortalecimento da formação, dos protocolos e do sistema de controle com a corregedoria e ouvidoria. Trata-se de mudar o nome para ter outra força ostensiva circulando pela cidade, mostrando, em alguma medida, que o “prefeito está fazendo”. Ele também criou o prisômetro, um painel de led de três metros de altura instalado no centro da cidade, para contabilizar as pessoas presas a partir do Programa Smart Sampa de reconhecimento facial. Mais uma vez, gerou visibilidade que, não necessariamente, significou redução sustentável da criminalidade e da violência.
Não se vê, contudo, medidas mais silenciosas e efetivas que o município poderia implementar, como, por exemplo, estratégias para fortalecer a fiscalização de áreas essenciais à prestação de serviços à população, como transporte e coleta de lixo, de modo a evitar sua cooptação por organizações criminosas por meio da gestão fraudulenta de contratos ou ainda sistema de fiscalização mais efetivos sobre estabelecimentos de venda de celulares usados como forma de intervir na cadeia criminosa que movimenta o roubo de aparelhos.
O exemplo da capital paulista é emblemático, pois concretiza o uso político e populista de medidas de segurança pública que aparentam dar conta do problema, mobilizam a opinião pública, geram, eventualmente, uma temporária sensação de segurança, sem de fato utilizar todo o potencial municipal para prevenir e reduzir crimes. Isso porque, parte importante desse potencial, como já mencionado, não cabe em estratégias de visibilidade ostensiva como tem feito o prefeito de São Paulo.
Por outro lado, é preciso apontar que o Brasil conta com experiências positivas que merecem ser reconhecidas e replicadas. Elas talvez tenham menos visibilidade e sejam menos exploradas politicamente, mas são justamente as políticas públicas baseadas em evidências, que envolveram investimento em planejamento e gestão e, fundamentalmente, forte compromisso das lideranças políticas com sua implementação. Partem de diagnósticos sobre os problemas locais para então integrar esforços das instituições e profissionais das diversas áreas – segurança, justiça, fiscalização, assistência social, entre outras – na direção dos objetivos estabelecidos: reduzir mortes violentas, prevenir violência contra as mulheres, reprimir crimes patrimoniais, recuperar o espaço urbano e enfrentar o crime organizado.
No âmbito estadual, o Espírito Santo (PSB) instituiu o programa Estado Presente há mais de 10 anos em um contexto de grave violência social e altos índices de homicídio. Paraíba (PSB) lançou o Paraíba Unida pela Paz. Mais recentemente, o Rio Grande do Sul (PSDB-PSD) alcançou resultados expressivos com o programa RS Seguro, focado na redução de homicídios, após o estado vivenciar um agravamento de conflitos entre gangues que resultaram no aumento das mortes violentas. No Piauí (PT), o programa de enfrentamento ao furto e roubo de celulares interferiu no ciclo pelo qual passam os aparelhos subtraídos (furto ou roubo, receptação e revenda do aparelho para o consumidor) e resultou na redução expressiva dessas ocorrências. A estratégia, desenvolvida pela SSP-PI, envolveu inovação tecnológica e articulação com outros órgãos públicos e está centrada na interrupção da cadeia de negócios que sustenta os roubos e furtos de celulares.
Essas iniciativas têm em comum o investimento na gestão das informações criminais, com definição de prioridades e enfoque territorial, assim como no aprimoramento das polícias, principalmente de sua capacidade de investigação, e na articulação com os órgãos dos sistemas de justiça e outros da administração pública. Além, é claro, do forte comprometimento de seus governadores. O que falta, então, para que elas pautem o debate público, sequestrado pela agenda meramente repressiva e populista?
Nesse cenário em que a insegurança pública é usada como meio de alavancar carreiras políticas sustentadas pela demagogia, é preciso que as lideranças democráticas abracem a causa em defesa de boas práticas que possam gerar resultados efetivos. É preciso que esses exemplos que geraram resultados efetivos sejam disseminados nos discursos públicos de cada uma dessas lideranças, que sejam comunicadas de forma clara e objetiva cotidianamente para a população, que sejam utilizadas no debate político para mostrar que são elas que garantem resultados sustentáveis em longo prazo, que subsidiem novas políticas e propostas legislativas, que sejam usadas para estimular novos atores políticos a abraçarem a segurança pública para além dos atores oriundos das forças de segurança. Deixar de ocupar esse terreno é um risco não só para a população, que sofre a insegurança no seu cotidiano, mas também para nossa democracia, que pode ser enfraquecida por narrativas e lideranças autoritárias que pregam a restrição de direitos como resposta fácil à violência.
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