Caso do senegalês Ngange Mbaye, morto por um PM no centro da capital, ilustra alta nas mortes causadas por agentes do Estado na gestão Tarcísio. Aumento foi de 62% em relação ao mesmo período do ano passado
Reportagem publicada pela Ponte Jornalismo (clique para acessar texto original)
Ngange Mbaye, ambulante senegalês de 34 anos, morava no Brasil havia uma década. No dia 11 de abril, foi até uma mesquita no Brás, região central de São Paulo, bairro onde vivia. Depois da oração, seguiu para a rua 25 de Março, onde trabalhava vendendo mercadorias como ambulante. A tentativa de impedir que policiais militares recolhessem seus produtos resultou em uma abordagem violenta, com agressões com cassetetes e, por fim, um disparo fatal.
O autor do tiro foi o 3º sargento da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Paulo Júnior Soares de Carvalho. Após a repercussão do caso, ele foi afastado das atividades operacionais. No boletim de ocorrência, os PMs omitiram as agressões sofridas por Ngange. A violência, no entanto, foi registrada por testemunhas que filmaram a ação [veja abaixo].
Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP), o policial permanece afastado. O inquérito conduzido pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e o Inquérito Policial Militar (IPM), que corre sob sigilo, ainda não foram concluídos.
A morte de Ngange é uma das 70 registradas em abril por ações de policiais no estado de São Paulo. O número representa um aumento de 62% em relação ao mesmo mês do ano passado, quando 43 pessoas foram mortas por agentes do Estado.
Letalidade em alta
O dado revela que, mesmo sem operações letais em curso, a polícia sob gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) continua matando. Em 1º de abril do ano passado, o governo anunciou o fim da Operação Verão — deflagrada após ataques e mortes de policiais, e que terminou com 56 pessoas mortas. O encerramento da operação coincidiu com uma queda nas mortes cometidas por agentes do Estado, após meses em que o número girava em torno de 70 por mês. Em 2025, no entanto, sem qualquer operação extraordinária em andamento, os índices voltaram ao patamar alarmante.
Todos os mortos em abril são homens — apenas um caso não tem identificação de gênero. A vítima mais jovem tinha 14 anos: um adolescente morto em 15 de abril em Santo André, na região metropolitana de São Paulo. Em todos os casos registrados, os policiais militares estavam em serviço, o que implica controle e responsabilidade do Estado sobre suas ações.

Os dados foram divulgados pela SSP-SP na sexta-feira (30/5) e são a base desta análise da Ponte Jornalismo, como tem ocorrido nos últimos anos.
Para a pesquisadora Malu Pinheiro, do Instituto Sou da Paz, os números de abril são especialmente preocupantes. “Já vínhamos de um ano bastante letal e, quando comparamos com o mesmo período do ano passado — em que não havia nenhuma operação policial em curso —, o cenário atual se torna ainda mais alarmante”, afirma. Ela ressalta que, embora operações não justifiquem mortes, costumam ser momentos em que há elevação os índices de letalidade. “Mas, neste mês de abril de 2025, não houve nenhuma operação que pudesse explicar um número tão alto como os 70 casos registrados”, completa.
Queda parcial no ano, mas aumento no governo Tarcísio

No acumulado do primeiro quadrimestre de 2025, o número de pessoas mortas por policiais teve uma queda de 11% em comparação com o mesmo período do ano passado. De janeiro a abril, 233 pessoas foram mortas em ações policiais no estado.
Apesar da leve redução, o número é 66% maior do que o registrado no primeiro quadrimestre de 2022 — antes da posse do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite.
Ambos já deram declarações públicas em defesa da atuação letal da polícia. Em março de 2024, diante de críticas de organizações de direitos humanos à Operação Verão, Tarcísio afirmou: “E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”. Derrite, por sua vez, transferiu temporariamente seu gabinete para a Baixada Santista durante a operação e não fez críticas públicas à conduta da tropa.
Enquanto isso, a força policial segue matando — sobretudo durante o horário de serviço. De janeiro a abril, 196 pessoas foram mortas por policiais que estavam em expediente. Outras 37 foram mortas por agentes que estavam de folga.

Malu aponta que o atual governo rompeu com uma política pública que, apesar de imperfeita, mostrava resultados concretos na redução da letalidade policial. “O Programa Olho Vivo tem fragilidades e pode ser criticado em vários pontos, mas é inegável sua efetividade na diminuição das mortes causadas pela polícia, além de contribuir para o aumento de registros em outras áreas, como violência doméstica, apreensões de drogas e armas”, afirma.
Segundo a pesquisadora, o crescimento da letalidade está diretamente ligado ao descontrole das forças de segurança. “Uma polícia mais letal é uma polícia descontrolada. Tanto o secretário quanto os comandantes precisam exercer esse controle — assim como o Ministério Público deve cumprir seu papel de fiscalização externa.”
Proporção de mortes por policiais segue alta
Em abril, o estado de São Paulo registrou 204 homicídios dolosos — um aumento de 5% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Destes, 34% foram cometidos por agentes das forças de segurança.

Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção ideal é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos. A proporção de mortos pela polícia em relação aos homicídios está em 21%.
No trimestre anterior (janeiro a março), a proporção foi de quase 20%. Nos três últimos meses de 2024, foi de 25%. Já nos primeiros três meses do ano passado, foi de 24%.

Divergência nos dados
Além da base de dados da SSP-SP, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), por meio do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), também registra mortes por intervenção policial.
Segundo o Gaesp, foram 67 mortes causadas por policiais em abril — três a menos que as 70 registradas pela SSP. A Ponte questionou o MP-SP sobre a discrepância, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.
Além disso, o MP-SP contabilizou cinco mortes cometidas por guardas civis municipais no mesmo mês. Três ocorreram em Barueri, uma em Itaquaquecetuba e outra em Carapicuíba, todas na região metropolitana.
O que dizem as autoridades
A Ponte questionou a SSP-SP sobre o aumento da letalidade policial e o crescimento nos homicídios em abril. A pasta respondeu em nota (abaixo). Também solicitou ao MP-SP esclarecimentos sobre a divergência nos dados, mas até o momento não obteve retorno.
A SSP esclarece que não é correta a comparação entre homicídios dolosos e mortes decorrentes de intervenção policial. Inclusive, a Portaria 229/2018 do Ministério da Justiça e Segurança Pública estabelece que as mortes resultantes de ações policiais legítimas não devem ser equiparadas a crimes como homicídios dolosos.
Para reduzir a letalidade policial, a atual gestão investe em formação contínua do efetivo, capacitações práticas e teóricas, e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, como armas de incapacitação neuromuscular. Além disso, comissões realizam a análise das ocorrências para os ajustes dos procedimentos operacionais, sempre que necessário, bem como à orientação da tropa durante as instruções e treinamentos promovidos regularmente nas unidades policiais em todo o Estado. Como resultado dessas medidas, os casos de MDIPs no estado apresentaram queda de 11%, no 1º quadrimestre deste ano, em comparação ao mesmo período de 2024.
Por determinação da SSP, todas as ocorrências de morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário.
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