Politização excessiva das corporações de segurança pública no Brasil legitima ações violentas e são uma ameaça ao estado democrático
Artigo escrito pela diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, e pela diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, publicado pela Quatro cinco um (clique para acessar texto original)
No dia 30 de outubro de 2022, data do segundo turno da disputadíssima eleição presidencial, a Polícia Rodoviária Federal fez uma série de blitze em estradas do país. O efeito prático dessas operações foi dificultar a chegada dos eleitores para exercerem seu direito ao voto. O mais curioso é que a maioria delas ocorreu na região Nordeste, que concentrava eleitores do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Pelo menos 610 ônibus fazendo transporte de eleitores foram parados nesse dia, sendo quase 50% na região.
Na investigação levada a cabo pela Polícia Federal em agosto de 2023 foram encontradas provas de que as blitze foram direcionadas aos eleitores de Lula. A PF localizou conversas tratando de uma reunião da cúpula da PRF, na qual Silvinei Vasques, então diretor-geral da corporação, teria determinado um “policiamento direcionado” no dia do segundo turno em cidades do Nordeste onde Lula teve mais de 75% dos votos no primeiro turno. Vasques havia manifestado em redes sociais, na véspera, sua preferência pelo candidato à reeleição Jair Bolsonaro.
A investigação culminou na prisão do diretor-geral da prf, que foi mantida até agosto de 2024, quando Vasques foi solto por decisão do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, com obrigação de usar tornozeleira eletrônica e a proibição de sair do país.
A atuação política das forças de segurança foi além das operações da Polícia Rodoviária Federal. Elas estiveram presentes também nos ataques às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023, materializadas na forma como agiram membros das Forças Armadas e Polícia Militar do Distrito Federal. Investigações em diversas frentes apontaram fortes indícios de omissão por parte da PM do DF na invasão, e resultaram também nas prisões do seu comandante-geral, Klepter Rosa Gonçalves, e de outros seis oficiais. De acordo com as investigações, os policiais não agiram para impedir o vandalismo devido ao alinhamento ideológico com os golpistas e até tentaram prejudicar a investigação dos atos criminosos. O Exército brasileiro também foi acusado de omissão diante dos acampamentos em frente ao seu QG, em Brasília. Pessoas ficaram acampadas ali durante incríveis 69 dias. No local se viam com frequência faixas golpistas que pediam intervenção militar.
Politização indevida
Essas duas cenas — eleições e 8 de janeiro — ilustram o ápice de um longo processo de radicalização das forças de segurança, tanto das Forças Armadas quanto das polícias. Resultam, também, de um processo de erosão das instituições democráticas que eclodiu anos antes. O início do que pode ser considerado um backlash ocorreu ainda em 2013, durante as chamadas Jornadas de Junho, que, se tiveram início em torno do Movimento Passe Livre, acabaram transbordando e culminaram em setores da sociedade indo às ruas rejeitar o sistema político como um todo. Passamos para as manifestações em torno do impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016, com o então deputado federal Bolsonaro dedicando seu voto pró-impeachment à memória do coronel Ustra, famoso torturador e chefe do órgão de repressão nos anos de chumbo, até chegar aos “guerreiros digitais” do bolsonarismo (a feliz expressão do jornalista Marcelo Godoy) a partir de 2018, com manifestações políticas recorrentes em redes sociais de membros das Forças Armadas. Por fim, o processo de radicalização se sedimentou durante o governo Bolsonaro, que explorou um novo tipo de acomodação das Forças Armadas no poder. Esse amálgama entre as Forças Armadas e a política está no artigo anterior desta série: “Desradicalizar as Forças Armadas”, escrito por Adriana Marques e Lucas Rezende, publicado em agosto. Mas o problema se estende a todas as instituições que detém o monopólio da força.
A democracia fica abalada quando forças de segurança trabalham para prejudicar um candidato
A democracia fica seriamente abalada quando forças de segurança, movidas política e ideologicamente, trabalham ostensivamente para prejudicar um candidato e favorecer outro, assim como quando lavam as mãos diante da iminência de uma ameaça golpista. A politização e a radicalização dessas forças se dá em diferentes dimensões. Há mais em curso.
O Congresso Nacional está povoado por representantes das forças de segurança. Essa presença aumentou em cerca de 35% nas eleições de 2022, com 38 deputados federais eleitos entre as forças de segurança, incluindo três oficiais do Exército. Em 2018, eram 28 nomes. Em 2010, apenas quatro. Nas últimas eleições municipais, em 2020, profissionais de defesa e segurança alcançaram cinquenta prefeituras e 809 cadeiras em câmaras municipais.
O Instituto Sou da Paz chamou esse fenômeno de policialismo. Suas características tornaram-se conhecidas: greves das polícias, celebridades policiais nas mídias sociais, crescimento das milícias e participação de agentes nas eleições. Um estudo publicado em 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que quase um terço dos policiais brasileiros interagiram com conteúdo antidemocrático nas mídias sociais, em comparação com apenas 17% do total da população.
Força policial influenciada ideologicamente piora a qualidade do serviço prestado à população
É um processo perigoso porque, por um lado, uma força policial excessivamente influenciada ideologicamente piora a qualidade do serviço prestado à população, pois se afasta do estrito cumprimento dos deveres legais ao adotar estratégias de promoção política e pessoal. Por outro lado, uma proporção significativa de parlamentares com formação policial enxerga a segurança pública de uma forma antidemocrática: crença inabalável no poder do uso excessivo da força, operações policiais de mão pesada (em geral voltadas contra populações negras e em situação de pobreza) e adesão a soluções simplistas no combate à violência.
O resultado é igualmente grave. De um lado, lideranças fazendo campanha política dentro dos quartéis ou nas redes sociais. Foi notícia, por exemplo, o fato de o corregedor da PM de São Paulo, coronel Fábio Sérgio do Amaral, manifestar-se nas redes sociais contra o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP), candidato à Prefeitura de São Paulo. Em 2018, oficiais fardados, também da PM paulista, foram flagrados tietando Bolsonaro durante a campanha presidencial. De outro lado, o discurso político com viés da segurança muitas vezes se concentra numa radicalização de desrespeito aos direitos humanos, de uso das redes sociais por influenciadores que celebram as mortes praticadas por policiais — uma soma de extrapolação da liberdade política e espetacularização da segurança pública que fomenta e valoriza práticas violentas.
Vergonhoso e perigoso
É comum a bancada da bala produzir personagens eleitos com a marca da agressividade, como foi o caso do deputado federal Éder Mauro (PL-PA), conhecido por admitir, em plena sessão, se dirigindo a deputadas de esquerda: “Eu, infelizmente, já matei sim, não foi pouco, não, foi muita gente. Tudo bandido. Queria que estivessem aqui para discutir olho no olho”. Tem sido hegemônica no Congresso a tendência do descompromisso com políticas de segurança pública sérias e sustentáveis. Assim como a adesão a soluções que não resolvem os problemas da violência e nem a sensação de insegurança na sociedade, como a ampliação do espectro de medidas repressivas, do endurecimento da legislação penal e da legitimação da violência como soluções.
É simbólica a moção de louvor ao dono do X, Elon Musk, depois da escalada de críticas do empresário ao ministro Alexandre de Moraes. Foi aprovada em abril deste ano pela Comissão de Segurança Pública da Câmara, com requerimento do deputado Coronel Meira (PL-PE). No início de setembro, o deputado federal Capitão Alden (PL-BA), capitão da PM da Bahia que se autodefine “patriota, anticomunista, armamentista e fechado com Bolsonaro”, encaminhou pedido de moção de repúdio ao Instituto Sou da Paz, em resposta ao esforço da organização contra a facilitação desmedida do acesso a armas por civis.
Entre os parlamentares oriundos das forças de segurança, o que se vê é um debate histriônico, que se alimenta do medo e de desrespeito à lei e ao estado de direito. Exemplos como o de Guilherme Derrite, deputado federal licenciado e secretário de Segurança Pública de São Paulo, e de Paulo Bilynskyj, deputado federal por São Paulo e influenciador digital, mostram o tamanho do risco desse tipo de envolvimento: o comportamento, os valores e as ações da polícia com tal visão minam a perspectiva de um policiamento técnico, profissional e republicano. Além de piorar a segurança pública, também ameaçam a democracia.
Não custa lembrar que Derrite foi quem disse uma vez ser “vergonhoso” para um policial não ter ao menos “três ocorrências” por homicídio em cinco anos de trabalho; e Bilynskyj teve a demissão aprovada pelo Conselho Superior da Polícia Civil depois de divulgar um vídeo nas redes sociais com apologia aos crimes de estupro e racismo, além de ser dono de clube de tiro, fato que omitiu ao TSE. É esse tipo de cultura político-policial que domina, por exemplo, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, onde mais da metade é do PL de Bolsonaro.
Essa visão radicalizada é levada ao paroxismo quando lideranças assim assumem postos no Executivo. É quando os riscos extravasam o campo simbólico e a violência verbal do ambiente digital e chegam aos efeitos práticos — o avesso do que se espera de boas políticas de segurança pública e de democracias dignas do nome.
Porta giratória
Não é trivial pensar em caminhos para desradicalizar as forças de segurança, mas existem possibilidades. Um primeiro aspecto é regular melhor a participação eleitoral de candidaturas oriundas das polícias. Segundo a atual legislação, para delegados de polícia são exigidos de quatro a seis meses de afastamento, dependendo do cargo eletivo a que irão concorrer. Para policiais civis, são três meses, independentemente do cargo. No caso da Polícia Militar, para policiais sem posição de comando, a jurisprudência do TSE permite a permanência no cargo até que se dê entrada ao pedido de registro da candidatura na Justiça Eleitoral, o que, na eleição municipal de 2020, ocorreu somente 49 dias antes do pleito. Além disso, a legislação permite que militares com mais de dez anos de serviço retornem a suas corporações em caso de derrota eleitoral, criando a chamada “porta giratória”, com a política invadindo os quartéis.
Países como Chile, Inglaterra, Estados Unidos, França, Portugal, Argentina, Peru, Colômbia e Bolívia possuem regras para impedir candidaturas de policiais ou militares da ativa, o que se dá em parte em função do aprendizado institucional desses países, que veem na politização das instituições de ordem uma ameaça à democracia.
É preciso regular melhor a participação eleitoral de candidaturas oriundas das polícias
Diante desse quadro, é importante avançar num prazo padronizado para uma quarentena que afaste o risco de conflito de interesses entre o policial candidato e o atuante na segurança pública. Considerando a proximidade das eleições, é possível mobilizar os Ministérios Públicos Eleitorais para monitorarem o uso das próprias atividades na segurança pública com a finalidade partidária, além de fiscalizar a norma que proíbe que sejam feitas propagandas usando fardas e outros símbolos policiais com fins eleitorais.
Outro caminho importante é regular o uso das redes sociais por policiais na ativa, com a consequente fiscalização desse uso pelas instituições policiais. A Polícia Militar paulista editou uma resolução no final de 2021 proibindo policiais de publicarem em suas redes sociais ou compartilharem em aplicativos de mensagens imagens de instalações físicas, armamentos, fardas, viaturas ou equipamentos da corporação, assim como divulgarem operações ou investigações policiais. Também no final de 2021, a corregedoria da Polícia Federal encaminhou parecer para todas as unidades para lembrar que policiais podem ser punidos pelo uso de emblemas ou da imagem institucional da PF nas redes sociais. Resta saber se e como essas normas são implementadas pelas próprias instituições.
Essas são algumas propostas para fortalecer o controle mais imediato sobre a politização excessiva das polícias, sem mexer no arcabouço institucional existente. São medidas fundamentais, no entanto, para organizar a participação eleitoral de candidatos que representam as organizações que detém o monopólio legítimo do uso da força. Um excelente começo se quisermos democratizar as polícias e a segurança pública no Brasil.