Projeto que libera estados a legislar sobre armas beneficia o crime organizado
Artigo escrito pela diretora executiva, Carolina Ricardo, e pela gerente de projetos, Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz, publicada pela Folha de S.Paulo (clique para acessar texto original)
Por 34 votos a 30, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei complementar (PLP) 108/2023 que permite que os estados legislem sobre a posse e o porte de armas de fogo.
Permitir que as unidades da Federação adotem diferentes normativas neste tema é inconstitucional, promove instabilidade, dificulta a fiscalização executada pela Polícia Federal e Exército e atrapalha o policiamento cotidiano, já que cada estado teria regras diferentes. Essa diversidade de regras também facilita a vida do crime organizado, que poderá explorar estados com normas flexíveis para a obtenção de mais armamento. Pesquisa do Instituto Sou da Paz com dados oficiais já identificou que, apenas no estado de São Paulo entre 2011 e 2020, nove armas legais foram desviadas diariamente para o mercado criminal.
A Constituição Federal define “autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico” como atribuição exclusiva da União. O entendimento de ser uma competência que não pode ser delegada aos estados está confirmado por juristas e pelo Supremo Tribunal Federal. Como referência, também é da União a competência para “emitir moeda”, algo impensável de se delegar à regulamentação estadual. Outras decisões do STF também reafirmam que armas de fogo são consideradas materiais bélicos.
Replicando o que há de pior nos Estados Unidos, o projeto tenta importar a falta de uniformidade sobre uma regra com implicações criminais e de fiscalização. Mesmo nos EUA, essa diferença traz ameaças para a segurança nacional. Um relatório da agência reguladora americana, Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives, mostrou que 85% das armas registradas no país eram de estados com acesso facilitado em 2015, locais que também foram origem do roubo ou “perda” de 100 mil armas naquele ano.
Recentemente, o Brasil viveu instabilidade nas regras sobre armas e munições, com a publicação de mais de 40 normas nos quatro anos do governo Jair Bolsonaro. O país sentiu na pele a dificuldade quando nem mesmo policiais sabiam dizer qual arma era de uso permitido ou restrito naquele mês. O PLP 108 pode multiplicar esse caos por 27, com cidadãos presos em um estado por algo que é autorizado no outro lado da divisa, e ainda sob risco de mudar de regulação a cada eleição estadual.
Esse projeto foi impulsionado por parlamentares armamentistas para facilitar o acesso a armas em seus estados. As regras atuais já permitem o acesso em situações de necessidade para defesa pessoal e atividades de lazer, como o tiro desportivo. Facilitar ainda mais esse acesso vai contra o desejo da maioria da população, que reiteradamente expressa em pesquisas de opinião não acreditar que uma sociedade mais armada seja a solução. Vai contra também às evidências que apontam como os últimos anos de descontrole abriram portas para o crime organizado renovar seu arsenal com fuzis e pistolas nacionais, sendo mais barato cooptar um CPF limpo no Brasil do que traficar fuzis dos EUA.
Esperamos que o presidente da Câmara dos Deputados e o plenário tenham a sensatez de frear esse projeto inconstitucional e sem méritos. Se querem tratar de segurança, seria mais produtivo aprimorar o combate ao tráfico de armas e aumentar o esclarecimento de crimes do que fragilizar a fiscalização das armas em circulação, fomentar a instabilidade, a competição e a desunião entre os entes da Federação.