Um dos temas polêmicos, a figura do juiz de garantias, que era rechaçada por Sergio Moro, foi aprovada pelo presidente
MARCELO KERVALT
Leia o texto original publicado no jornal Zero Hora
Sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na noite de terça-feira (24), o pacote anticrime pouco lembra aquele anunciado por Sergio Moro 10 meses antes. O texto final autoriza a implantação do juiz de garantias, dispositivo que contraria pedido de veto feito pelo ministro da Justiça e Segurança Pública.
Bolsonaro, alegando “razões de interesse público e de inconstitucionalidade”, vetou 22 pontos, como aumento da pena para crimes contra honra cometidos na internet e da inclusão, na categoria de hediondos, dos homicídios praticados com arma de fogo de uso restrito ou proibido. Antes de endereçar o projeto ao gabinete presidencial, o Congresso já havia suprimido pontos considerados essenciais pelo ex-juiz da Lava-Jato. Entre eles, a ampliação do excludente de ilicitude — que isentaria de punição policiais que viessem a matar “sob medo, surpresa ou violenta emoção”— , a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância e a realização de audiências com presos por videoconferência.
Embora inclua bandeiras levantadas por Moro, a matéria avalizada por Bolsonaro foi alicerçada sobre proposta enviada ao Legislativo em 2018 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Os dois projetos vinham sendo costurados desde fevereiro por um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados até serem unificados e remetidos ao Senado, onde foram aprovados a toque de caixa e sem quaisquer alterações. Agora, com a sanção, nova legislação valerá em 30 dias.
Apesar de desidratada, a proposta endurece o Código Penal, a legislação processual penal e outras leis de segurança pública com a justificativa de combater facções, tráfico de drogas e armas, atuação de milícias, delitos cometidos com violência ou grave ameaça e crimes hediondos.
Um dos pontos mantidos pelo presidente foi a criação do juiz de garantias, chamado de anti-Moro. Conforme o trecho, um juiz deverá conduzir a investigação criminal, tomando medidas necessárias para o andamento do caso, mas o recebimento da denúncia e a sentença ficarão a cargo de outro magistrado. Dentro do artigo que incluiu o juiz de garantias, Bolsonaro vetou o ponto que determinava o prazo de 24 horas para o preso em flagrante ser encaminhado à presença do magistrado para audiência com o Ministério Público e advogado.
Conforme a justificativa encaminhada pelo Planalto ao Congresso, a proposta gera insegurança jurídica e poderia aumentar despesas pela necessidade de deslocamento e contratação de juízes. Moro reforçou sua posição contra a sanção do mecanismo. Em nota, disse que o presidente “acolheu vários vetos sugeridos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública” e o seu posicionamento pelo veto ao juiz de garantias se deu, “principalmente, porque não foi esclarecido como o instituto vai funcionar nas comarcas com apenas um juiz (40 % do total) e também se valeria para processos pendentes e para os tribunais superiores, além de outros problemas. De todo modo, o texto final sancionado pelo presidente contém avanços para a legislação anticrime no país”, declarou.
Ex-corregedor nacional de Justiça e ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp é entusiasta do mecanismo por considerar que, no formato atual, o magistrado que profere a sentença pode chegar ao fim do inquérito inclinado para um lado:
— O juiz que trata da coleta de provas, que decide sobre medidas invasivas no curso da investigação, como deferimento de prisões temporárias, pode chegar contaminado ao fim do processo — pontuou.
Mas Dipp reconhece as dificuldades de implantação. Lembra que, em alguns Estados, um juiz responde por até 30 comarcas.
Promotora da 1ª Vara do Tribunal do Júri da Capital, Lúcia Callegari é contrária à medida:
— O Rio Grande do Sul e outros Estados não têm estrutura para isso. O gasto de implantação será absurdo. Dizer que o juiz pode chegar contaminado é uma distorção da realidade.
10 pontos sob análise
GaúchaZH consultou 11 especialistas com visões diferentes e pediu que comentassem oito itens sancionados e dois vetados do pacote anticrime.
1 ) Excludente de ilicitude e legítima defesa — sancionado
- Como será: passa a ser considerada legítima defesa a ação do “agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. A mudança amplia situações em que o excludente de ilicitude se aplica.
- Como era: não elencava a atividade policial como justificativa para a legítima defesa.
- Emerson Wendt, ex-chefe de Polícia Civil do RS: “Essa é uma necessidade específica que ampara o policial. Hoje, ele é colocado em situação de igualdade com qualquer outro cidadão. A polícia atua com receio de sofrer processo mesmo defendendo a vida de terceiro. Essa mudança não significa que não haverá investigação e punição em caso de excesso”.
- Felippe Angeli, gerente de relações institucionais do Instituto Sou da Paz, de São Paulo: “O governo faz confusão jurídica enorme, afinal, a presunção de inocência é para todos. O problema é que há um simbolismo ao declarar, de pronto, a possibilidade de uma ação policial nem sequer ser investigada. O Brasil é um dos países com maior letalidade policial do mundo e, agora, passa a dar mais respaldo para isso”.
2 ) Segurança máxima para líderes de facções — sancionado
- Como será: líderes de facções armadas começam a cumprir pena em prisões de segurança máxima, em regime fechado. O texto também impede que condenados por integrar organizações criminosas progridam de regime e tenham acesso a outros benefícios se houver evidências de que continuam ligados à organização.
- Como era: não há essas proibições.
- José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da PM de São Paulo: “Quem lidera, estrutura, incentiva ou cria uma organização criminosa precisa ser apartado da sociedade e dos outros presos, até para que os demais detentos não sejam cooptados. E, também, para servir de exemplo para os outros”.
- Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre: “Tem de se resolver antes os problemas da superlotação e do domínio dos presos para se obter algum efeito. Nosso sistema prisional local está assentado em cima destes líderes. Quando sai um, outro se cria. Além disso, o STF já se manifestou dizendo que a obrigatoriedade do regime fechado fere a garantia de individualização da pena, prevista na Constituição. O precedente que temos é esse”.
3) Aumento da pena máxima — sancionado
- Como será: tempo de cumprimento da pena privativa de liberdade não pode ser superior a 40 anos.
- Como era: tempo máximo era de 30 anos.
- Mario Ikeda, coronel da reserva e ex-comandante-geral da Brigada Militar no Estado: “Quanto mais tempo os criminosos ficarem presos, menos bandidos estarão soltos na sociedade. Sou favorável a tudo aquilo que reprime a prática de crimes e vejo, nessa medida, uma forma de alertar, amedrontar a criminalidade”.
- Sonáli da Cruz Zluhan, juíza da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre: “O aumento de penalização para determinados delitos, o regime fechado, a transferência para penitenciárias federais e o aumento de rol de delitos chamados hediondos ignoram totalmente o caótico sistema carcerário que, nas últimas décadas, tem somente empilhado presos sem oferecer qualquer tipo de tratamento penal”.
4) Progressão de regime — sancionado
- Como será: tempo exigido para progressão varia de 16% (para réu primário cujo crime tenha sido sem violência à vítima) a 70% (no caso de o condenado por crime hediondo com morte ser reincidente) de cumprimento de pena. Neste último caso, o condenado não poderá contar com liberdade condicional, mesmo se não for reincidente.
- Como era: a regra geral era que a pessoa que tivesse cumprido pelo menos 1/6 (16,66%) da pena no regime anterior. Para crimes hediondos, a exigência era de 2/5 (40%) da pena se o réu fosse primário e de 3/5 (60%) se reincidente.
- Lúcia Helena Callegari, promotora de Justiça da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Porto Alegre: “Concordo com o aumento da rigidez, mas, por mim, não haveria nem sequer progressão de regime. A maioria dos que progridem volta a cometer crimes nas ruas. Alguns, até são mortos. As penas têm de ser cumpridas integralmente”.
- Lúcio de Constantino, advogado criminalista e professor de Direito Processual Penal: “Sempre que as penas são endurecidas sem mudança social soa como vingança. E isso não resolve. O fato de penalizar mais duramente crimes como os hediondos com morte não surte efeito. O bandido que comete esse crime não vai deixar de cometê-lo por ter lido no Diário Oficial da União que a pena ficou mais dura”.
5) Fim da saída temporária — sancionado
- Como será: acaba com a saída temporária de condenados por crimes hediondos com morte.
- Como era: não tinha proibição de saída temporária a esses condenados.
- Mario Ikeda, coronel da reserva e ex-comandante-geral da Brigada Militar no Estado: “É válido para que esses presos fiquem cada vez mais tempo na cadeia. Se não conseguirmos socializá-los, então que sejam castigados, afastados da sociedade como castigo”.
- Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre: “De cada cinco presos em Porto Alegre, quatro estão em casa por falta de vagas. O nosso problema definitivamente não é a saída temporária dos que estão recolhidos. Outra coisa: você é jogado no regime fechado e sai 25 anos depois, sem amigos. Tem de achar lugar para dormir, comer, se vestir. Muitos não têm família estruturada. É mais fácil para esse preso retomar a vida tendo saídas esporádicas para se ambientar”.
6) Mais tempo em penitenciária federal — sancionado
- Como será: aumenta para três anos, renováveis por igual período, o prazo de detenção máxima em penitenciárias federais.
- Como era: prazo máximo de um ano, renovável por mais um.
- José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da PM de São Paulo: “Esse é um fator importante para controlar o crime organizado. As facções de São Paulo têm pavor de uma cadeia com regime disciplinar diferenciado que existe aqui, com rigor semelhante ao de uma penitenciária federal. Considero a criação desta unidade o fator principal para a redução dos motins nos mais de 170 presídios do Estado”.
- Sonáli da Cruz Zluhan, juíza da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre: “Transferências de presos para regimes federais são transferências de problemas para outras unidades. Quando se transfere um preso e não se trata o problema local, rapidamente outra liderança assume o comando. E logo o crime se reestrutura. Quando o preso volta ao local de onde foi transferido, traz consigo novas conexões, implementando a criminalidade. Prova disto é a migração das facções organizadas para o interior do Estado em função da superlotação dos presídios na Capital”.
7) Recompensa ao informante — sancionado
- Como será: União, Estados e municípios devem instalar ouvidoria para receber denúncias de informantes. A proposta garante sigilo de identidade, proteção contra punições na esfera pública e, se as informações levarem a ressarcimento de valores desviados aos cofres públicos, o recebimento de 5% do valor recuperado.
- Como é hoje: lei determinava apenas que os entes públicos “poderão oferecer recompensa” aos informantes, mas não determinava critérios. Valia apenas para informantes que não tivessem participado do crime. Se participaram, havia outros instrumentos previstos, como a delação premiada.
- Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas, de Brasília: “É extremamente necessária a instalação. As organizações criminosas se tornam a cada dia mais sofisticadas e muitas vezes são descobertas por uma denúncia. Nos mecanismos atuais para rastrear o dinheiro de fontes ilegais, há obrigatoriedade de que os bancos, as revendedoras de automóveis e as joalherias comuniquem operações vultosas que possam ser escusas. Mas nem sempre isso acontece, por receio de reações das quadrilhas. A recompensa estimula as denúncias e, ao que parece, com resultados muito favoráveis nos países que implantaram essa medida”.
- Manoel Galdino, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, de São Paulo: “É importante porque o Brasil, hoje, não tem uma legislação de proteção do denunciante. Existem muitas dúvidas. No geral, é uma medida boa, mas que precisa ter os resultados avaliados. É preciso estar atento se não irá abrir porta para a corrupção”.
8) Paralisação da prescrição — sancionado
- Como será: paralisa prazo de prescrição enquanto estiverem pendentes embargos de declaração ou de recursos a tribunais superiores.
- Como era: essas situações não paralisavam o prazo de prescrição, que transcorria normalmente.
- Lúcio de Constantino, advogado criminalista e professor de Direito Processual Penal: “Não vejo como positivo. Quem sofre um processo penal passa por angústias intelectuais que causam envelhecimento, depressão, síndromes. Processos muito longos são torturantes. A solução para as protelações excessivas não é suspender, mas, sim, julgar os recursos previstos em tempo imediato”.
- Gilson Dipp, ex-corregedor nacional de Justiça e ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “Impedir a prescrição por conta de recursos que estão previstos em lei é um despautério. Permite-se o recurso, mas se tira parte do efeito que produz. Isso causa insegurança jurídica. É mais plausível diminuir o número de recursos”.
9) Lista de crimes hediondos — vetado
- Proposta: considera crime hediondo homicídio cometido com arma de fogo de uso restrito ou proibido (fuzis, por exemplo).
- Como é hoje: são considerados hediondos todos os homicídios qualificados (por motivo fútil, mediante pagamento de recompensa e à traição, por exemplo), a posse ou o porte ilegal de arma de fogo de uso restrito entre outros.
- José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da PM de São Paulo: “Toda repressão deveria ter tratamento condizente com o crime. Assim, se dá resposta para a sociedade e se repele novas ações. Por mim, qualquer homicídio com arma de fogo, seja de uso restrito ou não, deveria ser considerado crime hediondo”.
- Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre: “Na prática, essa mudança não iria provocar alteração significativa. Seria mais uma lei para inglês ver. Hoje, a maioria dos homicídios com arma de fogo já é hediondo. Nunca vi um crime cometido com fuzil, por exemplo, que não tenha sido considerado hediondo. Nunca vi matar alguém para se defender utilizando um fuzil”.
10) Crimes na internet — vetado
- Proposta: triplicaria pena para crimes contra a honra cometido ou divulgado nas redes sociais.
- Como é hoje: pena varia de um mês a dois anos e não há menção a crimes cometidos ou divulgados na internet. Consta, apenas, que se praticado por meio que facilite a divulgação, a pena pode ser aumentada em um terço.
- Emerson Wendt, ex-chefe de Polícia Civil e especialista em crimes cibernéticos: “Sou a favor que se aumente a pena para determinadas circunstâncias e conforme a amplitude do crime, o que não quer dizer que eu esteja de acordo que seja triplicada. Hoje, a pena é baixa. Não acho que iria diminuir a incidência de crime, mas iria incentivar que mais pessoas movessem ação penal em vez de buscarem apenas reparação de danos”.
- Felippe Angeli, gerente de relações institucionais do Instituto Sou da Paz, de São Paulo: “Uma elevação tão alta para esses crimes, que concordo serem graves, ficaria desproporcional. Teríamos crimes tão graves quanto com penas menores. Esse tipo de medida comprometeria a harmonia do sistema jurídico penal”.