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    MATÉRIAS

    Por trás dos Boletins de Ocorrência

    Coluna publicada no portal JOTA em 20 de janeiro de 2016:
    Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas 


    Por Stephanie Morin
    Coordenadora da área da Gestão do Conhecimento do Instituto Sou da Paz

    Que a letalidade policial no Brasil é um ponto frágil da política de segurança, os especialistas e defensores de direitos humanos concordam. Mas há uma miríade de visões sobre a melhor forma de reduzir o crescente número de mortes em operações policiais. Prova disso foi a diversidade de reações à publicação da Resolução Conjunta No. 2pelo Conselho Superior da Polícia Federal e o Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil no dia 4 de janeiro. Impõe-se um olhar pragmático sobre as potencialidades e limitações da Resolução.

    A Resolução visou “uniformizar os procedimentos internos das polícias judiciárias” e “ampliar a transparência” na elucidação de lesões corporais e homicídios cometidos por policiais. Propôs a substituição de designações genéricas nos registros dessas ocorrências por “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial’ ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” (art. 2º), e trouxe orientações concretas para a Polícia Civil sobre os procedimentos investigativos adequados nesses casos (art. 3º e art. 4º).

    Avanços bem-vindos

    Pois bem, a proposta de padronizar a classificação inicial de ocorrências em que civis são feridos ou mortos pelas polícias brasileiras é positiva. Há no Brasil oito categorias para registrar tais situações, segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2011.[1] Alguns Estados contabilizam mortes provocadas por policiais na estatística de homicídios; outros somente incluem as mortes envolvendo policiais fora de serviço. Há estados que somente divulgam o total de vítimas de homicídio e mortes decorrentes de operações policiais, outros, o total de ocorrências. Diante das disparidades, a padronização dos registros – sem prejuízo à publicação regular de dados desagregados sobre mortes em operações policiais – contribuiria para a realização de diagnósticos mais precisos sobre o emprego da força letal pelas polícias no Brasil e a formulação de políticas públicas efetivas de prevenção e redução da letalidade.

    Devem ser comemoradas, ainda, as seguintes orientações da Resolução a respeito da apuração desses casos: é obrigatória a instauração e tramitação prioritária das investigações (art. 3º(1)), bem como a comunicação imediata das ocorrências ao Ministério Público e a Defensoria Pública (art. 3º(2)), a apreensão das armas e veículos envolvidos (art. 3º(3)), a juntada (anexação) de laudos necroscópicos das vítimas aos inquéritos policiais (art. 3º(8)) e a requisição de exame pericial dos locais, com ou sem a presença física dos cadáveres (art. 3º(4)). Ademais, os delegados podem requisitar tanto a apresentação dos registros de comunicação e de movimentação das viaturas policiais envolvidas nos incidentes (art. 3º(5)), quanto dos próprios policiais, sob pena de responsabilidade administrativa e criminal em caso de descumprimento (art. 3º(7)). Há também um incentivo importante à utilização de delegacias especializadas – e não territoriais – na investigação de homicídios por policiais (art. 4º).

    Por que essas instruções importam, se muitos procedimentos delineados já são exigidos pelo Código de Processo Penal brasileiro? O fato é que as provas produzidas em casos de letalidade policial frequentemente são insuficientes para elucidar os fatos, alimentando impunidade. Segundo pesquisa da Anistia Internacional Brasil sobre 220 homicídios decorrentes de intervenção policial na cidade do Rio de Janeiro em 2011, 183 investigações seguiam em aberto em abril de 2015, dos quais somente uma gerou denúncia criminal. A Pública Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo apurou ainda que 51 dos 330 casos de mortes praticadas por policiais militares na cidade de São Paulo em 2014 tiveram seus inquéritos policiais arquivados.

    O nó a desatar

    Apesar dos avanços relatados, a Resolução Conjunto No. 2 contém limitações preocupantes. Conforme apontaram diversas organizações de direitos humanos, a nova nomenclatura — “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” – mantém a lógica de oposição presente nos termos utilizados anteriormente ao ainda referir-se à vítima como resistente. O Boletim de Ocorrência (BO) é o primeiro registro elaborado quando da notificação de um crime, realizado pelo escrivão de polícia em uma Delegacia Policial (DP) a partir das informações narradas a ele. Como este registro não é fruto de investigação, as informações nele contidas são preliminares e, portanto, a classificação do delito deve ser neutra.

    Tampouco a alteração da nomenclatura das ocorrências seria uma bala de prata para conter excessos envolvendo policiais.  No Estado de São Paulo, por exemplo, o uso do termo “resistência seguida de morte” foi extinto após a publicação da Resolução SSP-5 em janeiro de 2013, que obrigou a adoção do termo “morte decorrente de intervenção policial”. A medida, no entanto, não resultou na diminuição de mortes em operações policiais no longo prazo. Após uma queda inicial de entre 25 e 40% das mortes no Estado durante o primeiro semestre de 2013 em comparação ao mesmo período de 2012, os casos voltaram a subir em 2014 e 2015. Policiais em serviço foram responsáveis por 358 mortes entre janeiro e junho de 2015, um aumento de 9,8% no Estado e o maior número de mortes já registrado para um primeiro semestre desde 2004.

    Outra limitação da Resolução se refere à ausência de uma definição clara de um “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Como mencionado, há diferentes entendimentos sobre quais ocorrências deveriam ser contabilizadas na estatística de morte decorrente de intervenção policial (policiais em serviço e de folga? Homicídios em legítima defesa?), o que pode ocasionar diferenças nas taxas de homicídios dos estados e interpretações equivocadas sobre a atuação da polícia. Por exemplo, tratar as mortes cometidas por policiais fora de serviço como homicídio doloso pode produzir um aumento da taxa de homicídio, ao passo que se forem consideradas mortes decorrentes de intervenção policial, podem afetar a taxa de letalidade da polícia.

    Ademais, a Resolução deveria ter detalhado outros procedimentos chave para policiais civis e peritos após a ocorrência de uma morte provocada por policiais, tais como: o comparecimento do delegado ao local dos fatos tão logo seja comunicada a ocorrência, a documentação fotográfica e descrição minuciosa de todas as circunstâncias relevantes encontradas no cadáver durante a realização do exame necroscópico, e a importância de regulamentação da prestação de socorro por agentes de segurança pública em situação de confronto, visando coibir a eventual remoção indevida de cadáveres.

    Soma-se a isso o fato de a Resolução não ter caráter vinculativo. O Conselho Superior de Polícia, de acordo como art. 10 do Regimento Interno do Departamento de Polícia Federal, “é entidade de deliberação coletiva destinado a orientar as atividades policiais e administrativas em geral e a opinar nos assuntos de relevância institucional”. Suas resoluções oferecem esclarecimentos e recomendações, não instruções que obrigatoriamente devem ser instituídas pelas polícias estaduais. Desta forma, a oportunidade de avanços trazidos pela Resolução – a padronização dos registros e procedimentos investigativos no território nacional – é incerta.

     O caminho a seguir

    É fundamental que o uso da força letal pelas polícias no Brasil ocorra dentro dos estreitos limites da lei. Medidas como a Resolução No. 2 dos conselhos da Polícia Federal e Polícia Civil que buscam fortalecer a gestão da segurança e a investigação de eventuais excessos podem ser um importante antídoto contra a criminalidade.

    No entanto, mais do que discussões sobre o nome dado às mortes cometidas por policiais, são necessárias medidas vinculantes voltadas ao esclarecimento dos casos, à responsabilização de agentes envolvidos em abusos e à produção de estatísticas sobre as ocorrências. Só assim o Estado será capaz de diagnosticar a efetividade de políticas implementadas para coibir a letalidade e construir forças policiais mais republicanas.

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    [1] São elas: “Resistência seguida de morte”, “Autos de resistência”, “Mortes em confronto”, “Homicídio”, “Homicídios com motivação enfrentamento com a polícia”, “Homicídio ou lesão corporal seguido de morte”, “Resistência com morte do opositor”, e “Resistência/pessoas mortas”.

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