Matéria publicada no portal IG, dia 29 de agosto de 2014
Entre abril e junho, 163 pessoas foram mortas por policiais, corporação credita índice ao maior número de confrontos
São Paulo – Depois de um ano de indicadores positivos, que mostraram diminuição no índice de pessoas mortas pela polícia no estado de São Paulo, os dados do segundo trimestre de 2014 mostram que a letalidade da polícia voltou a crescer. Levantamento divulgado pelo Instituto Sou da Paz, baseado em números do Diário Oficial, mostra que 163 pessoas foram mortas em território paulista pelas polícias militar e civil entre os meses de abril e junho.
É a maior letalidade policial desde o mesmo período de 2006, quando ocorreu a onda de violência do Primeiro Comando da Capital (PCC) que aterrorizou a população e gerou contra-ataques severos dos agentes do Estado. Iniciado em abril, o levante de violência da organização criminosa acabou deixando centenas de mortos no segundo trimestre daquele ano — entre eles, um total de 215 vítimas das polícias paulistas.
“É muito triste ver os indicadores subindo, mas isso não me surpreende, porque é a tendência que vemos há décadas”, analisa a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. “Nos últimos anos a realidade tem sido a média de 500, 600 mortes causadas por policiais anualmente. Assim, infelizmente, o que surpreendeu mesmo foi a redução da letalidade no ano passado e não o aumento atual.”
O crescimento da letalidade das polícias paulistas vem um ano depois da aplicação de novas regras para diminuir os índices instituídas pelo atual secretário de Segurança Pública, Fernando Grella, ao assumir o cargo. Na ocasião, ele se viu diante de taxas alarmantes relacionadas à violência dos agentes em 2012, como o índice de 79 mortes registradas somente em novembro, e instituiu duas medidas que, ao menos por um curto período de tempo, surtiram efeito.
Apontado como uma das causas que geravam as mortes, os policiais foram proibidos de eles mesmos encaminharem ao hospital as vítimas após confrontos com a polícia — em muitos casos, como os emblemáticos registrados na década de 1990, elas chegavam às instituições já mortas, o que poderia acobertar os reais motivos para os óbitos.
Outra mudança aplicada por Grella a partir de janeiro do ano passado foi em relação à nomenclatura usada pelos agentes para registrar os óbitos: antes definidas apenas como “resistência seguida de morte”, elas passaram a ser chamadas de “morte decorrente de intervenção policial”, implicando, na prática, em investigações para determinar a legitimidade da ação dos agentes.
“Essas medidas surtiram um efeito bastante significativo em 2013, quando vimos os índices despencarem. Mas parece que não foram suficientes para diminuir a letalidade”, avalia Ligia Rechenberg, coordenadora da área de gestão do conhecimento do Instituto Sou da Paz. “É um número alto e esperávamos reação das autoridades, até porque já havíamos feito um alerta após a divulgação dos dados do primeiro trimestre, que já eram preocupantes.”
Samira concorda com o aspecto positivo das medidas,mas acredita que são insuficientes. “A questão central é o padrão operacional: ou se começa a discutir por que se tem gerado tantas mortes ou não conseguiremos que essas ações, como as aplicadas pela Secretaria de Segurança Pública, perdurem com o tempo”, diz Samira.
Além disso, tanto ela quanto o Instituto citam outro fator importante para se conseguir abaixar os índices a um padrão minimamente aceitável: a mudança de mentalidade de toda a sociedade, que, acostumada com as altas taxas de violência, passou a ver os homicídios cometidos por policiais como um crime menor. Basta constatar a ênfase com que os altos índices de roubo vêm sendo tratados nos últimos meses, bem maior do que a dada aos dados relacionados a homicídios.
“É uma verdadeira inversão de valores. Claro que temos um problema significativo em relação aos roubos, mas isso não é e nem deve ser o tema central. Há mortes acontecendo e, infelizmente, elas não parecem ganhar a centralidade necessária no debate público”, analisa Samira. “Por diversas vezes, policiais são absolvidos em tribunais de júri mesmo com provas de que cometeram ilegalidades. Se a polícia é violenta ela o é como um reflexo da própria sociedade. Assim, enquanto uma boa parcela da população pensar que bandido bom é bandido morto, isso não vai mudar.”
Ligia concorda: “Precisamos considerar as expectativas da sociedade em relação à polícia. É necessário pensar com urgência o que a sociedade como um todo e o Estado podem fazer para evitar que os agentes continuem a agir dessa forma”.
Consequência de confrontos
Apesar dos números oficiais relacionados à letalidade das polícias, a SSP contesta a comparação entre os índices de 2014 e anos anteriores: para ela as mortes só cresceram no período devido ao aumento do números de confrontos entre agentes das corporações e criminosos. De fato, um dos dados incluídos no relatório do Instituto Sou da Paz mostra que, só na capital paulista, houve um aumento de 70% no número de policiais feridos em trocas de tiros – um total de 41 agentes na região e de 78 policiais em todo o Estado, configurando a maior alta em confrontos desde outubro de 2012.
“Conforme dados da Central de Análise e Planejamento da Secretaria da Segurança Pública, no segundo trimestre de 2013, 14,4% dos criminosos envolvidos em confrontos com a polícia vieram a óbito. Isto é, mais de 85% deles, nestas situações, acabaram presos, feridos ou fugiram, o que indica a taxa de letalidade em ocorrências com trocas de tiro. Em 2014, também no segundo semestre, o percentual de mortos foi de 16,5%, para um total de 83,4% de presos, feridos ou foragidos”, disse em nota, ressaltando o aumento de 65% nos confrontos de 2013 para 2014. “Em termos estatísticos, as diferenças de um ano para o outro não são tão discrepantes.”
Para a SSP, o crescimento no número de confrontos parece diretamente atrelado ao aumento de roubos em todo o território paulista, modalidade que registrou sua 14ª alta consecutiva no mês de julho, conforme demonstrado por levantamento divulgado pela própria secretária, na segunda-feira (25). A instituição afirma que 67% desses confrontos ocorreram após casos de roubo e que, em números absolutos, não houve aumento significativo de pessoas mortas após intervenção policial.
“O que precisamos no que concerne a esse tema é que ele tenha uma prioridade política independente da gestão. É necessário transformá-lo em política de Estado. Só assim, no futuro, conseguiremos ver resultados concretos que não fiquem se alterando de um ano para o outro”, conclui Samira.