Artigo pulicado no El País em 27 de fevereiro de 2015
Nas últimas semanas, diversos casos de pessoas mortas em supostos confrontos com policiais ganharam repercussão. A letalidade da polícia, segundo as autoridades, seria uma resposta ao aumento da criminalidade em todo o país. No Estado de São Paulo, 707 pessoas foram mortas por intervenção policial em 2014, mais do que o dobro do ano anterior e muito mais do que o verificado em 2012 e 2006, anos de “crise”. No Rio de Janeiro, o total de pessoas mortas chegou a 582, superando 2013. Os números de 2015 não indicam melhora: janeiro terminou com 64 pessoas mortas por policiais. Na Bahia, uma única ação da Polícia no mês de fevereiro causou 12 mortes e ainda feriu seis pessoas.
O aumento dos crimes não pode ser usado para justificar a escalada da letalidade policial. Isso não é razoável nem do ponto de vista técnico, nem do político. No caso de São Paulo, o argumento já perde força quando se identifica que as mortes se concentram na periferia, enquanto os crimes que teriam originado os confrontos se distribuem e crescem por toda a cidade.
Em termos técnicos, é preciso lembrar que polícia só é polícia porque é legitimamente autorizada a usar a força, porém em níveis distintos de acordo com a situação e o risco à segurança dos policiais e dos cidadãos. Da força mais branda, que é a presença uniformizada de um policial nas ruas, até o patamar mais elevado, que se materializa pela força letal, há diversos graus. A avaliação sobre a melhor conduta deve ser parametrizada por critérios objetivos, que orientem a tomada de decisão dos policiais e possibilitem maior controle sobre os procedimentos adotados.
Nesse sentido, é louvável a aprovação recente da lei federal que expressa de modo claro que não é legítimo atirar em pessoa em fuga, armada ou desarmada, se não ofereça risco de morte para o agente policial ou de terceiros. Toda análise sobre uso da força letal deve partir desse critério.
A partir disso, o que se espera é que cada confronto seja analisado cuidadosamente por parte das forças policiais e dos órgãos de controle externo (em especial Ministério Público) tanto no aspecto de sua legalidade quanto de sua adequação aos procedimentos existentes. Isso ajuda tanto a identificar abusos e responsabilizar os envolvidos com rapidez, como a identificar desafios na atuação da polícia e a desenhar estratégias para garantir a segurança dos policiais e evitar mortes injustificadas.
Parte das mortes em confrontos é legítima, outra parte é fruto de desvios, como os recentes casos em que policiais foram flagrados plantando armas junto às vítimas. Por isso é tão importante realizar essa análise e acompanhar cada caso sem generalizações. Assim é possível identificar e coibir os abusos. Os maus policiais precisam receber claramente a mensagem de que abusos não são tolerados pela corporação. Além disso, diversas medidas podem antecipar-se a estes desvios de conduta, tais como a supervisão permanente dos procedimentos existentes e o afastamento de policiais envolvidos com outros desvios.
Do ponto de vista político, falta um discurso claro de que a boa polícia é aquela que sabe usar bem a força que lhe é outorgada pela sociedade. Se os criminosos estão de fato mais violentos, o caminho é reforçar a inteligência policial, a integração entre as polícias, e investir no esclarecimento dos crimes. A ideia de que “bandido bom é bandido morto” precisa ser superada. O critério para avaliar a legitimidade das mortes cometidas por policiais não pode ser a existência de antecedentes criminais das vítimas.
Sociedade, autoridades e polícias precisam ter a coragem para enfrentar a letalidade policial. As ferramentas para diminui-la existem, o urgente é que sejam colocadas em prática.
Carolina Ricardo, 37 anos – assessora sênior de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz
Ligia Rechenberg, 38 anos – coordenadora da área Gestão do Conhecimento do Instituto Sou da Paz