Matéria publicada no O Globo em 23 de setembro de 2014
Atrás somente da Venezuela, 22 casos de mortes foram registrado este ano, sendo que 9 vítimas são crianças
Por Tatiana Farah
SÃO PAULO — Maria Solange Araújo sai pelas ruas do Bom Retiro, bairro de confecções de São Paulo, recolhendo restos de tecidos. Junta tudo em caixas que se acumulam no pequeno imóvel alugado onde vive com o filho Artur, de 9 anos. O quartinho vai ficando menor, mas a dor não passa. Solange perdeu o filho de 21 anos, Daniel, para uma bala perdida, em 2010, quando ele saiu de casa com amigos e foi morto por disparos durante uma ocorrência entre a polícia e supostos ladrões na periferia da cidade. Ninguém foi punido.
A história de Solange, que, com o ex-marido e a filha, percorre os corredores do Tribunal da Barra Funda para buscar respostas, repete-se pelo país. Um relatório divulgado pelas Nações Unidas revela que o Brasil é o segundo país onde há mais ocorrências de balas perdidas da América Latina e o terceiro com o maior número de mortes por elas provocadas. O ranking internacional foi estabelecido por um levantamento das Nações Unidas que contabilizou 22 brasileiros mortos e 53 feridos, entre 2009 e 2013. E a situação se mostra mais grave ainda este ano. Uma amostragem feita pelo GLOBO aponta que pelo menos 22 pessoas morreram vítimas de balas perdidas entre janeiro e setembro, sendo que nove eram crianças de até 12 anos de idade.
O Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe (Unlirec, sigla em inglês) mapeou 550 ocorrências envolvendo balas perdidas em 27 países do continente e atingindo, entre mortos e feridos, 617 pessoas. O levantamento foi feito a partir de reportagens publicadas nesses países. No Brasil, 35% das ocorrências resultaram em morte.
A Venezuela é o país que guarda o maior número de casos de balas perdidas e de mortes, 74 e 67, respectivamente. Segundo lugar no número de casos, com 71, o Brasil fica atrás da Colômbia em mortes, com 29 óbitos, enquanto foram registradas 36 mortes de colombianos. Já em relação aos feridos, o Brasil tem o maior número de ocorrências do continente, com 53 feridos.
No Brasil, o maior número de casos tem como origem algum tipo de intervenção policial, como perseguição a supostos criminosos (27% das ocorrências). Em segundo lugar, estão os tiroteios entre gangues ou quadrilhas, com 24%, acompanhados por disparos efetuados durante assaltos 20%. Um outro dado chama a atenção: 10% dos casos são devidos a conflitos interpessoais em que as testemunhas acabam alvejadas. No entanto, em 40% dos casos não foi possível determinar a causa dos disparos.
— São números preocupantes. Chamam a atenção no Brasil o índice de casos por conflito interpessoal, que é essa arma na mão de cidadãos que acabam tendo algum conflito e atingem terceiros, e o número de casos em que se tem uma operação policial em andamento — analisa Bruno Langeani, coordenador de sistema de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz.
Para Langeani, é preciso que o Brasil avance nos protocolos para intervenções policiais, assim como intensifique o desarmamento. Entre os 27 países, o Brasil e a Colômbia são os que tem o maior número de casos de balas perdidas em conflitos interpessoais, sete ocorrências.
— A violência dos conflitos interpessoais se resolve com o desarmamento, com campanhas de entrega voluntária de armas. O problema é que, nos últimos anos, o governo afrouxou a campanha de desarmamento. Desde 2012, não faz nem propaganda pelo desarmamento. Nos primeiros anos da lei, foram apreendidas 500 mil armas, e, nos últimos sete anos, esse número caiu para cem mil — critica o coordenador do instituto.
Quanto à violência das ocorrências policiais, a recomendação do Sou da Paz é a melhora dos protocolos e do treinamento das polícias.
— Tem de ter melhores protocolos de treinamento e intervenção. Em muitos dos casos, a melhor doutrina policial diz que às vezes você vai perder uma prisão, mas vai preservar uma comunidade. Você chama reforço, faz um cerco, mas não pode sair disparando — afirma Langeani.
O GLOBO levantou pelo menos 22 casos que resultaram em morte e outros 12 que resultaram em ferimentos graves e que abalaram suas comunidades. No Rio, os casos resultantes das intervenções policiais e da guerra do tráfico causaram revolta e ondas de protestos violentos, como nas mortes de Gabriele Teles, de apenas um ano, em Cabo Frio, de Luanderson Lima, de 12 anos, na Favela do Aço, e do eletricista Anderson Luiz Silva, de 21 anos, em Niterói, ou no caso do menino Vítor Bento, de oito anos, que levou um tiro na cabeça durante uma operação da UPP no Morro dos Macacos, em maio, mas conseguiu sobreviver.
O Sou da Paz, que analisou o estudo da ONU, também lançou um levantamento próprio sobre as armas apreendidas em São Paulo, o que mostra como armas antigas e de baixo calibre são as mais utilizadas em homicídios e causam os maiores danos nos casos de testemunhas atingidas.
De 14.488 armas analisadas, 1,2 mil estavam ligadas a homicídios. A maioria, 97%, eram armas curtas e 34% eram de calibre 38. Esse armamento é majoritariamente nacional, sendo que 77,8% eram da marca Taurus. E o que mais se destacou no levantamento, segundo Bruno Langeani, foi a idade das armas: 88% delas foram fabricadas antes de 2003, ano em que foi promulgada a lei 10.826/2003, que trata do desarmamento.
Para o Sou da Paz, isso mostra que o desarmamento funcionou inibindo a proliferação dos armamentos mais modernos, mas que não avançou.
— Por que um criminoso teria uma arma dos anos 70, se pudesse encontrar uma pistola Glock de última geração? É sinal de que ele não encontra essas armas novas — avalia Langeani.
O vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV, Renato Sérgio de Lima, afirmou que os números referentes a balas perdidas caminham ao lado dos índices de homicídio desses países, que são muito elevados. No Brasil, ocorrem 56 mil homicídios por ano.
— Esse número extremamente absurdo revela seu lado ainda mais perverso, que são as mortes por bala perdida. As balas perdidas estão associadas ao nível de beligerância de cada país. Para quem pensa que a violência policial é a resposta para conter a violência, esse estudo mostra que estão morrendo inocentes, pessoas que não estão relacionadas a crimes — disse o vice-presidente do Fórum, para quem é preciso ponderar, nesse ranking, que, quanto mais liberdade de imprensa existe em um país, mais visibilidade pode ser dada a esse tipo de violência.
Para Lima, o Brasil tem “pouquíssimas iniciativas de controle de homicídios” e é preciso priorizar, de fato, o tema da segurança pública. A saída, para o Fórum, está ação coordenada entre a União, os estados e municípios, integrando desde os sistemas de informação, como os protocolos de intervenção e operação policial.
— Esta é uma agenda que está no discurso dos candidatos à Presidência, mas, aquele que ganhar as eleições terá de traduzir essa pauta promovendo a articulação e a coordenação dos esforços em segurança pública.