Matéria veiculada na BBC Brasil em 13 de maio de 2015.
Uma média de 116 pessoas morreram por dia no Brasil em 2012 por disparos de armas de fogo, aponta o levantamento Mapa da Violência 2015, divulgado nesta quarta-feira. O número é o mais alto já observado pelo estudo, cuja série histórica começou em 1980.
É o equivalente a impressionantes 4,8 mortes por hora, índice parecido ou superior ao registrado em países em guerra.
“É como se ocorresse um massacre do Carandiru por dia (quando 111 presos foram mortos no presídio paulistano em 2 de outubro de 1992)”, diz à BBC Brasil o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor da pesquisa e coordenador de estudos da violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
“E isso ocorre na calada da noite, sem que haja mobilização ou escândalo. Há, na verdade, mobilização no sentido contrário, de pôr mais armas na mão da população.”
Em números totais, foram 42.416 pessoas mortas por armas de fogo em 2012 (dado mais atual disponível pelo Ministério da Saúde), e a maioria das vítimas são jovens de 15 a 29 anos.
Quase 95% dessas mortes são homicídios (o restante são acidentes com armas, suicídios ou sem causa determinada).
‘Tradição de impunidade’
Na introdução, o estudo – cujo título é Mortes Matadas por Armas de Fogo – diz que não há uma causa única por trás dos altos índices de violência do país.
“A tradição de impunidade, a lentidão dos processos judiciais e o despreparo do aparato de investigação policial são fatores que se somam para sinalizar à sociedade que a violência é tolerável em determinadas condições, de acordo com quem a pratica, contra quem, de que forma e em que lugar”, diz a pesquisa.
Leia mais: Pelo 4º ano seguinte, Brasil lidera ranking de violência do campo
O estudo culpa também a “farta disponibilidade de armas” e a “a decisão de utilizar essas armas para resolver todos os tipos de conflitos interpessoais, na maior parte dos casos, banais e circunstanciais”.
Essas mortes por armas de fogo não ocorrem de forma uniforme pelo país. Na região Sudeste, por exemplo, o índice de mortes caiu quase 40% entre 2002 e 2012 – por causa de expressivos declínios nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro -, mas subiu fortemente em todas as demais regiões do país.
No Norte, o aumento foi de 135% no mesmo período.
Proporcionalmente à população, o Estado com a maior taxa de mortes por armas de fogo é Alagoas, onde foram registrados 1.740 óbitos em 2012.
O Mapa também identificou focos de violência que têm crescido pelo país: municípios do interior onde a economia cresceu, mas a presença do Estado permaneceu deficiente; municípios de fronteira, que são rota de organizações transnacionais de contrabando e tráfico de drogas; o arco do desmatamento da Amazônia, infestado por práticas de trabalho escravo, madeireiras ilegais, grilagem e extermínio de índios; e grotões do país onde ainda vigora o clientelismo político.
“A violência migrou à locais menos protegidos”, diz Jacobo. “Com as mudanças no desenvolvimento econômico do país, houve uma ‘interiorização’ e um espalhamento dos homicídios.”
160 mil mortes evitadas
Segundo o estudo, o crescimento da violência armada teria sido ainda mais acentuado se não fosse o controle de armas no país, imposto desde 2003 pelo Estatuto do Desarmamento.
O Mapa da Violência estima que 160.036 pessoas (sendo 70% delas jovens) foram poupadas de mortes por armas de fogo entre 2004 e 2012 graças à lei, que restringe o porte de armas a quem tem mais de 25 anos, passe por testes de aptidão e não responda a inquéritos policiais, entre outras exigências.
Leia mais: Violência silenciosa: As agressões de filhos contra os pais
O cálculo é feito a partir de projeções de quantas mortes eram esperadas (segundo análises estatísticas) para cada ano e quantas mortes de fato ocorreram.
O Estatuto do Desarmamento, porém, é alvo de polêmica. A Câmara dos Deputados debate, em uma comissão especial, um projeto de lei (3722/12) que propõe a revogação do estatuto e facilita a aquisição de armas no país.
A justificativa é de que, mesmo com o estatuto, “o país alcançou a maior marca de homicídios de sua história”, segundo afirmou, de acordo a Agência Câmara, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF), coronel de reserva da PM.
Já críticos alegam que a mudança na lei visa beneficiar o lobby da indústria armamentista. “As estatísticas mostram que se você arma mais a população, você vai ter mais armas na mão da criminalidade”, argumentou o deputado Ivan Valente (PSOL-SP).
O Mapa da Violência defende que o desarmamento é “requisito indispensável”, mas insuficiente para conter a violência no país.
“Ninguém afirmou que o estatuto era a solução; ele foi apenas um primeiro passo”, afirma Jacobo Waiselfisz. “Os passos seguintes seriam mudanças que não se cumpriram, como reformas do Código Penal, do sistema penitenciário e policial.”
Jacobo cobra, também, mais campanhas de desarmamento da população, que considera “esporádicas”.
Há, no momento, uma dessas campanhas em andamento em São Paulo, até o final do mês, organizada pelo Instituto Sou da Paz. Quem entregar armas receberá indenizações de R$ 150 a R$ 450, dependendo do armamento.
Aumento de Mortes
Em todo o período analisado pelo Mapa da Violência, de 1980 a 2012, o Brasil registrou 880.386 mil mortes por armas de fogo, número superior à população de São Bernardo do Campo (Grande SP).
“O total de mortos por armas de fogo em 1980 foi de 8.710 pessoas, o que significa que houve um aumento de 387% até 2012”, diz o estudo. “A população brasileira, nesse mesmo período, cresceu cerca de 61%.”
E um dos fatores mais preocupantes é que essas mortes ocorrem sobretudo entre os mais jovens. “O jovem negro e pobre é a principal vítima”, diz Jacobo. “Há estudos que apontam que os custos de saúde, economia e pelas vidas perdidas cheguem a 5% a 10% do PIB do país.”
Outro estudo recente, o Monitor de Homicídios, do Instituto Igarapé, calcula que uma em cada dez pessoas assassinadas anualmente no mundo seja brasileira.
E, enquanto a América Latina abriga apenas 8% da população mundial, concentra 33% dos homicídios registrados no planeta.