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    MATÉRIAS

    Verbos para Cláudia

    Artigo publicado pelo Brasil Post em 21 de março de 2014.

    Não há adjetivos que façam justiça. “Abominável, inaceitável, barbárie desumana”. Esgotaram-se as figuras de linguagem. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Não sobram nomes. Cláudia, Douglas, Amarildo. Não há mais o que falar sobre a desmedida violência policial no Brasil. Resta fazer algo a respeito.

    Tragicamente, o que torna o assassinato de Cláudia peculiar não é o fato que agentes da lei, funcionários públicos pagos pelos cidadãos com seus impostos, comandados por um governador eleito democraticamente pelo povo, tenham matado torpemente. Tampouco o asfalto que lhe tolheu qualquer misericórdia ou dignidade aos seus últimos suspiros é especial por localizar-se no Rio de Janeiro, pois mortes assim se repetem ao redor do país. Tratar cadáveres, iminentes ou consumados, como um saco de lixo, tampouco é novidade.

    Pior: nem para estes mesmos policiais que abateram e arrastaram Cláudia matar era novidade, já que tinham no seu histórico conjunto 69 mortos por “auto de resistência”. Que diabos de sociedade permite que um sub-tenente, envolvido em 63 mortes, continue a lhe representar como agente armado da “lei”? Tampouco a falta de responsabilização criminal dos policiais assassinos, ou política dos seus comandantes, será peculiar.

    O que torna a via crúcis de Cláudia distinta é o simples fato de uma tranca de porta-malas ter traído seus algozes, e que seu martírio foi filmado por um cidadão corajoso e se alastrou como fogo pelas novas mídias, impactando mais córneas e consciências que o usual. Não fossem esses dois detalhes, o homicídio de Cláudia é absolutamente corriqueiro no Brasil. Cláudia é a regra; sua morte, “normal”.

    A outra diferença da norma, mas que mesmo assim não constitui exceção, é que Cláudia era comprovadamente “trabalhadora”, mãe amorosa, pessoa “de bem”. Ou seja, nem de longe entrava na mórbida máxima “bandido bom é bandido morto”, chavão medieval que de alguma forma sobrevive em boa parcela da psique da população do país e legitima a violência policial.

    Acontece que, em qualquer país onde as estruturas de segurança pública e justiça criminal tenham adentrado o século 21, “bandido bom é bandido preso, julgado com probidade e, se necessário, preso sob condições humanas”.

    Alexandre, o marido de Cláudia, do alto de uma dor incomensurável que não passará, nunca, entende esse fato: “nem o pior traficante do mundo merece esse tratamento que ela teve”. Ou seja, matar seres humanos jamais deve ser normatizado como “ossos do ofício” de uma polícia – mesmo que “suspeitos” ou bandidos – pois polícia não existe pra julgar ou punir.

    É essa a grande tragédia escancarada pelo sofrimento de Cláudia: ela é simplesmente mais um nome, uma vítima a mais, não um caso excepcional. Enquanto a sociedade brasileira e a própria polícia continuarem legitimando a violência policial, continuaremos cotidianamente a assistir o macabro desfile de nomes, seguidos de adjetivos e figuras de linguagem.

    Não se trata de demonizar uma corporação inteira ou, pior, todos os seres humanos que a compõe. Neste ano, o Instituto Sou da Paz conduz a sexta edição do Prêmio Polícia Cidadã, que reconhece, celebra e dissemina o trabalho dos (muitos) bons policiais. Nem se trata de responsabilizar sozinhos soldados, treinados e mandados para tal, pelas estruturas constitucionais postas, ou pelas decisões políticas de seus comandantes e daqueles que os elegem: todos nós.

    Também não se trata mais de debater “se” a reforma das polícias no Brasil é pertinente, necessária, urgente. Não há especialista, gestor, acadêmico ou analista em sã consciência que não compactue com a necessidade de mudança. Trata-se de discutir o “como” e o “quando”. E de garantir ações, além de palavras e compartilhamentos no Facebook, da sociedade como um todo nesta direção.

    Encontraremos resistência dentro da própria corporação, por óbvio. Nenhuma instituição quer ser atacada, criticada e forçada a mudar – especialmente de forma isolada, quando os problemas do sistema de segurança pública e justiça criminal são sistêmicos e todas as outras instâncias também precisam de reforma urgente. A PM não deve “pagar o pato” sozinha.

    Mas o sistema de segurança pública brasileiro não pode continuar a permitir que matar (quem quer que seja) constitua uma ‘ferramentas de trabalho’ comum e, assim, perpetue normas que deveriam ser raras exceções.

    A decisão política é de cada cidadão brasileiro: quantas mais Cláudias, Douglas e Amarildos vamos tolerar? Permitiremos a eleição de qualquer candidato a governador ou presidente que não se declare publicamente pelo fim do modelo atual de policia com a criação de polícia única de ‘ciclo completo’?

    “Somos todos Cláudia”? Não, não somos. Se a polícia militar invadisse casas de classe média alta, entrasse atirando na sua rua, torturasse no Leblon e nos Jardins, matasse a esmo seus vizinhos e familiares – por bala “perdida” ou “resistência seguida de morte” – essa polícia continuaria a existir?

    Por definição, a polícia que mais mata no mundo – cinco seres humanos por dia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – não é uma boa polícia. Esta serve para “servir e proteger”. Já estamos cansados de saber que uma profunda reforma da polícia é necessária. Falta fazer.

    Não há adjetivos que façam justiça para Cláudia. Verbos, sim.

    Daniel Mack é analista sênior do Instituto Sou da Paz

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