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    MATÉRIAS

    Prisão antes da sentença é punição pior que condenação

    Matéria publicada em 23 de fevereiro pelo portal Jota

    A operação Lava Jato trouxe para o debate público o uso e possíveis abusos das prisões preventivas decretadas pelo juiz federal Sérgio Moro. Em paralelo a essa discussão e sem o mesmo impacto midiático, as prisões provisórias continuam a ser um evidente problema a ser enfrentado pela Justiça brasileira.

    Uma pesquisa feita pelo Instituto Sou da Paz em parceria com a Associação pela Reforma Prisional (ARP) mostra que a Lei das Cautelares (12.403), em vigor desde 2011, não foi suficiente para baixar a níveis razoáveis o percentual de prisões provisórias para crimes em flagrante.

    Os dados coletados nos dois primeiros anos de vigência da lei mostram que o percentual de presos em flagrante que foram mantidos em prisão provisória caiu no Rio de Janeiro de 88,3% para 72,3%. Em São Paulo, a redução foi maior: de 87,9% para 61,3%.

    Na operação Lava Jato, o juiz Sérgio Moro é acusado por advogados de manter executivos em prisão preventiva como forma de forçar acordos de delação premiada. Nos casos de prisão provisória, as suspeitas são um pouco distintas. Juízes não aplicariam a série de medidas cautelares alternativas à prisão provisória como forma de antecipar a pena de quem foi pego em flagrante.

    Decisões antecipatórias como estas ocorrem mesmo para crimes de menor potencial e cujas penas, após a condenação, não seriam cumpridas em regime fechado.

    “O que observamos, não só pelo ainda alto índice de manutenção de prisão provisória, mas também pelas entrevistas com juízes é que há um uso indevido e abusivo da lei. Na prática antecipa-se a pena (contra a lei) para dar respostas à sociedade que cobra o judiciário e demanda punições”, afirma Bruno Langeani, coordenador de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz.

    “Ainda que isto crie situações esquizofrênicas como manter pessoas presas por vários meses para crimes menores que, ainda que se acarretarem numa condenação, provavelmente o cumprimento de pena não será na prisão. Na prática tanto para juízes, quanto para a sociedade em geral é preciso desconstruir o mito de que prisão é a única forma de punição”, acrescentou.

    Os números referentes ao Rio de Janeiro indicam que em aproximadamente 31% dos casos há condenação a pena a ser cumprida em regime fechado. No restante dos casos, o transcorrer do processo mostraria que a prisão provisória foi desnecessária ou abusiva. Em quase 8% dos casos, a justiça terminou por absolver pessoas que foram mantidas por meses em prisão provisória.

    Até para os casos de tráfico de drogas, em que os juízes raramente aplicam outras cautelares, o índice de condenação ao regime fechado não supera 52% dos casos.

    Chega-se portanto a uma situação paradoxal. Ao longo da tramitação do processo judicial, a punição a essas pessoas  – mantidas provisoriamente em regime fechado – é mais grave do que a pena imposta ao final de um julgamento justo.

    “A forma como a prisão provisória é utilizada não apenas é abusiva como também ilegal. Do total de presos em flagrante naquela cidade, apenas 31% foram, posteriormente, condenados à prisão em regime fechado. Para mais de 50% dos casos os juízes mantiveram os réus presos durante o processo e no final essas pessoas foram colocadas em liberdade, ou foram absolvidas, ou receberam penas diversas da prisão. Desse modo, a punição aplicada antes do julgamento é ainda mais dura do que aquela imposta depois que os juízes analisaram os processos e tiveram acesso a todas as informações sobre o crime cometido”, afirmam os pesquisadores.

    Crimes

    Aprovada no Congresso para aumentar o rol de cautelares que poderiam ser aplicadas aos crimes em flagrante, a lei 12.403 ainda não foi suficiente para tornar de fato a prisão uma medida excepcional. Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aproximadamente 227 mil pessoas estão presas sem condenação – o equivalente a 32% da população carcerária do País.

    O levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz mostra também a maior aplicação da nova lei das cautelares para os crimes de furto e de receptação. Entretanto, os percentuais permanecem elevados, na visão dos pesquisadores.

    No Rio de Janeiro, metade dos acusados de furto simples presos em flagrante permaneciam encarcerados provisoriamente. Em São Paulo, 71,2% dos presos não usaram nenhum tipo de arma para cometer o crime. Apenas 11% dos presos utilizaram arma de fogo.

    Para os crimes de tráfico de drogas , roubo e homicídio praticamente não houve alteração do quadro com a vigência da lei das cautelares. Em praticamente todos os casos, os juízes determinam a prisão provisória.

    “Em relação aos presos por tráfico, vale frisar que seu encarceramento indiscriminado é insustentável e contraproducente. Isto porque a maior parte desses presos é composta por pequenos traficantes aqueles apreendidos com pouca droga, sem antecedentes criminais, que não integram facção criminosa e não portam armas. Nesses casos, assim como no furto e na receptação, a aplicação de cautelares poderia ser expandida; do contrário, nossas prisões continuarão lotadas sem qualquer reflexo positivo na segurança pública”, afirmam os pesquisadores.

     

    Cautelares

    A fiança é a medida cautelar mais aplicada pelos juízes, conforme números de São Paulo – 27,2% dos casos. Em mais da metade dos casos, o valor da fiança foi estipulado em um salario mínimo.

    No Rio de Janeiro, a cautelar mais aplicada pelos juízes é o comparecimento periódico em juízo – 26,2% dos casos. Em seguida, a aplicação da fiança foi a medida mais utilizada – 15,7%.

    O monitoramento eletrônico dos suspeitos, apontado pelos magistrados como uma das mais eficientes cautelares, é medida excepcional, conforme os dados coletados. O mesmo ocorre com a possibilidade de obrigar o suspeito a permanecer em casa à noite.

    Uma explicação possível para isso é a falta de controle ou de equipamentos para monitorar os suspeitos mesmo três anos após a vigência da nova lei.

    “A falta de credibilidade de outras cautelares, como o recolhimento domiciliar noturno, proibição de ausentar-se da comarca e de aproximar-se de determinada pessoa também está relacionada com a precariedade de sua fiscalização. Entre os promotores do Rio de Janeiro, houve citações expressas de que a ausência de mecanismos de fiscalização de algumas cautelares faz com que, na prática, apenas fiança e comparecimento periódico em juízo sejam consideradas cautelares aplicáveis”, explicam os pesquisadores no texto.

    Conclusão

    Abaixo, as conclusões a que chegaram os pesquisadores do Instituto Sou da Paz e da Associação pela Reforma Prisional (ARP):

    “A Constituição brasileira, ao consagrar o princípio da presunção de inocência, erigiu à condição de garantia fundamental o direito que os réus em processos criminais possuem de serem tratados como inocentes. Isso implica reconhecer que a prisão, como regra, deveria ocorrer após o trânsito em julga- do da sentença. A prisão durante o processo é medida excepcional.

    Entretanto, ao se analisarem os dados das pesquisas realizadas pela ARP e Instituto Sou da Paz, verifica-se que a regra continua sendo a privação da liberdade durante o processo mesmo após a inserção de diversas outras possibilidades pela Lei das Cautelares em 2011. Na cidade do Rio de Janeiro, 72% dos réus tiveram a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva, situação idêntica para mais de 60% dos acusados na cidade de São Paulo.

    Apesar dos elevados percentuais de presos provisórios nessas capitais, é preciso reconhecer que a Lei produziu um impacto positivo, reduzindo o número de presos provisórios. Em São Paulo, o impacto foi mais significativo, pois o número de presos mantidos provisoriamente passou de 87,9% para 61,3%. Já no Rio de Janeiro, os efeitos foram mais modestos, com o percentual passando de 83,8% foi para 72,3%.

    Chama a atenção não só o fato de os juízes utilizarem a prisão provisória de maneira abusiva, mas, sobretudo, o seu uso indevido. Muitos dos réus são mantidos privados da liberdade durante o processo e, ao final, mesmo quando condenados, são colocados em liberdade. Nesses casos, fica evidente a utilização da prisão provisória como uma sobrepena processual, frise-se, mais grave do que a pena recebida no processo, violando os ditames legais.

    O uso indevido da prisão provisória, além de representar uma violação às garantias constitucionais dos acusados, impacta, igualmente, a dramática situação do sistema carcerário brasileiro, contribuindo para o agravamento da superlotação, que alimenta as facções criminosas, deteriora as condições de encarceramento, a falta de saneamento, de atendimento médico, educação e trabalho de qualidade, entre outros.

    A busca pelos motivos que fazem a prisão provisória a escolha preferencial dos juízes de São Paulo e Rio de Janeiro percorre vários caminhos: situação econômica precária dos réus (sem profissão, sem residência fixa), falta de contato com um defensor no momento da prisão, necessidade de alcançar metas de produtividade, dificuldade de acesso aos sistemas de informática, são alguns dos aspectos que contribuem para que os réus tenham o direito de responder ao processo em liberdade indevidamente negado.

    Além dos problemas acima expostos, cumpre ressaltar que a permanência da possibilidade de justificar a prisão provisória sob o fundamento da “garantia da ordem pública” contribui para o uso indiscriminado da privação da liberdade. Incidental ou propositalmente vago, esse termo fornece um guarda-chuva sob o qual se abrigam decisões arbitrárias, subjetivas, socialmente enviesadas e, portanto, legalmente questionáveis. Abriga-se também aí a noção ilegal de que, na dúvida, o benefício não deve pender para o réu, mas para o que se imagina ser necessário à defesa da sociedade. A própria Lei das Cautelares, ao manter o termo “garantia da ordem pública”, sem precisar minimamente seu conteúdo, contribui, assim, para reduzir o impacto dos avanços que introduziu, deixando aberta a brecha para o uso abusivo e “justiceiro” da prisão provisória.

    Outro fator que atua na mesma direção é a forte afinidade entre promotores e juízes, perceptível nas entrevistas, observações de audiências e leitura de decisões judiciais feitas durante a pesquisa no Rio de Janeiro. Geralmente irmanados na defesa da “ordem pública” e na manutenção da prisão preventiva, os agentes do Judiciário e do Ministério Público contrariam dessa forma o princípio de independência entre os dois órgãos, capaz de possibilitar ao primeiro um julgamento isento e ao segundo o efetivo desempenho do papel de “fiscal da lei”, evitando ilegalidades e zelando pela observância das garantias constitucionais dos acusados.

    O discurso de juízes e promotores de justiça aponta como justificativa adicional para a opção pela pri- são provisória a falta de mecanismos de fiscalização satisfatórios da maioria das medidas cautelares diversas da prisão, sendo que a privação da liberdade assegura o comparecimento do réu a todos os atos do processo, garantindo seu termo em condições ideias para o Judiciário, ainda que incorrendo em abusos diversos.

    É de fato absurdo que as duas cidades mais ricas do país não tenham garantido, mais de três anos após a aprovação da Lei, os mecanismos para a efetiva fiscalização das cautelares. À parte da necessidade principal de se garantir as condições para o efetivo cumprimento de uma Lei, era de se esperar que o poder público se mobilizasse com agilidade diante também dos comprovados benefícios das medidas cautelares: enorme economia para os cofres públicos ao usar o recurso à prisão com parcimônia; diminuição dos custos sociais gerados pelo risco de aquele preso provisório ser cooptado por uma organização criminosa, de perder seus vínculos sociais e empregatícios e de ter que arcar com o estigma típico do egresso do sistema penitenciário.

    Entretanto, como visto, mesmo as medidas cuja aplicação não dependem de regulamentação adicional, como a fiança em juízo no Rio de Janeiro e o comparecimento em juízo em São Paulo, são pouco utilizadas. No Rio de Janeiro, somente 1,2% dos réus teve uma fiança arbitrada pelo magistrado, enquanto em São Paulo apenas 1,3% teve o comparecimento periódico designado.

    Em suma, a entrada em vigor da Lei das Cautelares está longe de contribuir para a soltura imediata de “dezenas de milhares” de presos provisórios, como foi alardeado negativa ou positivamente pela imprensa na ocasião. Pode, no entanto, ter delineado alguns avanços, dando visibilidade ao debate sobre a necessária excepcionalidade da prisão provisória e incidindo, mesmo que ainda insatisfatoriamente, sobre a cultura conservadora e encarceradora que predomina no sistema de justiça criminal.

    Importante fazer a ressalva de que o objetivo de rever essa prática não é apenas desencarcerar como um fim em si, mas sim tornar o sistema de justiça mais racional, eficaz e menos oneroso aos cofres públicos. É preciso retomar suas características direcionadas à resolução de conflitos, ao reparo de danos e à interrupção do ciclo da violência, em contraste com a resposta fácil, ineficaz e inconsequente dos anseios puramente punitivos.

    Se de fato, ao longo do tempo, a Lei das Cautelares vai conseguir alterar os padrões de uso da prisão provisória, fazendo com que a liberdade durante o processo se torne regra, é algo que só o monitora- mento permanente permitirá afirmar.”

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